SALMOS
CANTAI AO SENHOR UM CÂNTICO NOVO, CANTAI AO SENHOR...
Salmos é um dos livros mais apreciados pelos cristãos. Quem
nunca encontrou conforto e consolo em tempos de necessidade em suas páginas?
Porém, sua autoria, teologia, interpretação e aplicação são temas que geram
muitos debates que o tornam um dos livros mais complexos do cânon.
Com relação à sua composição temos que distinguir dois aspectos:
a autoria de um Salmo específico
a composição do livro todo
Alguns Salmos parecem ser datados do segundo milênio a.C. enquanto outros foram produzidos no
período pós-exílio. Porém, a composição do livro de modo completo ocorreu
apenas no período pós-exílio, isto é, após o ano 539 a.C.
A autoria de cada um dos Salmos é deduzida a partir do seu
título. Apenas 34 Salmos não possuem título. Dentro do grupo de Salmos que
possuem título 100 apontam seu autor. Dos 100 títulos que indicam o autor 73
são atribuídos a Davi. Outros autores são: Moisés – Salmo 90; Salomão – Salmos
72, 127; Asafe – Salmos 50, 73, 83; Hemã – Salmo 88; Etã – Salmo 89; Filhos de
Coré – Salmos 42, 44 a 49, 84, 85, 87.
O nome Salmos vem do grego Psalmoi, derivado da palavra psallo,
que significa dedilhar, aludindo a um instrumento de cordas. Em hebraico o
livro recebe o nome de Tehillîm, que significa cânticos de louvor.
Os salmos estão organizados em cinco grandes livros, a saber:
Livro I: 1 a 41
Livro II: 42 a 72
Livro III: 73 a 89
Livro IV: 90 a 106
Livro V: 107 a 150
Esta divisão está contida nos manuscritos mais antigos, porém os
estudiosos têm descoberto pequenas coleções de Salmos:
Coleção davídica I: 3 a 41
Coleção dos filhos de Coré I: 42 a 49
Coleção davídica II: 51 a 65
Coleção de Asafe: 73 a 83
Coleção dos filhos de Coré: II: 84 a 88 (exceto o 86)
Coleção de louvor congregacional I: 95 a 100
Coleção Aleluia: 111 a 117
Coleção Salmos dos Degraus (subida a Jerusalém): 120 a 134
Coleção davídica III: 138 a 145
Coleção de louvor congregacional II: 146 a 150
Estas coleções menores foram organizadas nos cinco livros vistos
acima para compor o livro completo dos Salmos. Alguns especulam que o
organizador realizou este trabalho para destacar a transição de um livro para
outro para o leitor entender o assunto principal de um livro. Nesta organização
os Salmos 1 e 2 formam a introdução do livro. Cada um dos livros que compõem os
Salmos termina com uma doxologia, cujo propósito é dar louvor a Javé pelo que
foi revelado sobre si em cada livro. Observe o padrão que se repete em Sl.
41:13; 72:18ss; 89:52; 106:48 e 150, que serve como fechamento geral da
composição dos Salmos.
O livro de Salmos, segundo os estudiosos, pode seguir o mesmo
conceito aplicado no livro dos Reis, isto é, alguém coleta e organiza materiais
de diversas fontes de acordo com um propósito teológico, desta forma a mensagem
geral do livro transcende a mensagem particular de cada Salmo.
Estudos comprovam que o livro de Salmos não foi completado de
uma vez, pois suas partes I a III, encontradas nos manuscritos do Mar Morto
(cerca de 150 a.C.), estão dispostas na mesma ordem que conhecemos hoje.
Entretanto, os livros IV e V estão dispostos em outra ordem, o que pode
significar que os livros I a III já estavam com sua ordem definida no fim do
século II a.C., enquanto que os livros IV e V ainda estavam em processo de
organização, concluído plenamente pouco antes do período de Cristo. Portanto,
ao longo de quase mil anos, vários escritores compuseram suas poesias que foram
organizadas em pequenas coleções em diferentes períodos da história com um
propósito teológico.
Com relação à forma os Salmos podem ser classificados em:
louvor, lamento e sabedoria. Cada Salmo possui uma única forma, exceto o Salmo
22, onde os versos 1 a 21 são de lamento e os versos 22 a 31 são de louvor.
Os Salmos não eram exclusivos do povo hebreu, pois os povos
mesopotâmicos também se utilizavam deste recurso literário para expressar suas
emoções à divindade. A semelhança dos Salmos hebraicos com os mesopotâmicos se
encontra na forma dos Salmos: o louvor e o lamento. Contudo existem diferenças
consideráveis entre os Salmos hebraicos e mesopotâmicos, e uma delas é a
abordagem do adorador mesopotâmico. Os Salmos de lamento mesopotâmicos tem a
intenção de manipular a divindade, e para isto recorre a rituais de magia, pois
entende que é culpado em todas as situações, mesmo que não saiba a razão. Como
entende que a divindade mesopotâmica não seja justa e coerente o adorador
apenas se propõe a aplacar a ira divina.
O adorador hebreu pressupõe sua inocência e não tenta manipular
a Deus com rituais de magia e encantamentos. Quando os Salmos indicam
claramente a culpa do autor, como é o caso do Salmo 51, a ofensa a Deus é
sempre de caráter ético, enquanto o lamento mesopotâmico é relativo ao
sacrifício impróprio no culto.
Estrutura de Salmos
Seguindo a teoria da
organização teológica do livro dos Salmos, a seguinte estrutura é proposta:
Introdução
Salmo 1 – No final Deus justifica os justosSalmos 1 e 2 Salmo 2 – Escolha e proteção
divina do rei israelita
Livro Transição Tema Conteúdo
Livro 1 Salmo 41 Conflito entre Davi e Saul Muitos lamentos individuais; a
maioria dos salmos menciona inimigos
Livro 2 Salmo 72 Dinastia de Davi Salmos principais:45, 48, 51, 54 a 64; em geral , salmos de
lamento e “inimigos”.
Livro 3 Salmo 89 Crise assíria do século VIII Coleções de Asafe e dos filhos de Coré;
salmo principal:78
Livro 4 Salmo 106 Introspecção sobre a destruição do templo e
o exílio Coleção de louvor: 95 a
100; salmos principais: 90, 103 a 105.
Livro 5 Salmo 145 Louvor/reflexão sobre o retorno do exílio e
início de nova era Coleção de aleluia:
111 a 117; cânticos de subida: 120 a 134; repetição davídica: 138 a 145; salmos
principais: 107, 110, 119.
Conclusão: 146 a 150 – Louvor culminante a Deus.
HILL, Andrew & WALTON, J. H. Panorama do Antigo Testamento.
São Paulo: Vida, 2007. p. 379.
I. Introdução – 1 e 2
II. Conflito de Davi com Saul – 3 a 41
III. Reinado de Davi – 42 a 72
IV. Crise assíria – 73 a 89
V. Introspecção sobre a destruição do templo e o exílio – 90 a
106
VI. Louvor e reflexão sobre o retorno e a nova era – 107 a 145
VII. Louvor final – 146 a 150
O livro de Salmos segue o padrão interpretativo da história
narrada no livro de Reis e Crônicas, e sua organização não foi feita levando-se
em consideração as circunstâncias na data de composição, mas de acordo com o
propósito teológico da coleção. Por exemplo, os salmos 138 a 145 são davídicos,
porém estão organizados na divisão pós-exílica do Livro dos Salmos. Ainda
outros Salmos estão dispostos de forma a atingir o objetivo teológico do organizador,
tais como:
45 – Hino da coroação de Davi
48 – Relação com a conquista de Jerusalém por Davi
51 – Arrependimento de Davi
78 – Reflexão sobre a queda do Reino do Norte
90 – Salmo de Moisés no início da divisão exílica
103 – Debate sobre o perdão de Deus dos pecados da Nação
110 – Soberania divina com ênfase escatológica
119 – Relação com a Lei como ênfase no período pós-exílio
Outro exemplo da organização de acordo com o objetivo teológico
é a coleção Aleluia (Salmos 111 a 117) que segue o Salmo 110 com os temas da
fidelidade e governo divinos. A coleção Cântico dos Degraus (Salmos 120 a 134)
remete à peregrinação de todo hebreu a Jerusalém. Esta coleção faz parte da
seção do exílio no livro de Salmos, portanto os leitores refletiriam sobre o
retorno a Jerusalém após o cativeiro babilônico.
De modo geral, de acordo com esta teoria, podemos explicar as
coleções do Livro de Salmos da seguinte maneira:
Livro I
Mencionam lamentos e inimigos
Autor clama pela ajuda de Deus
Salmos 3 a 13 – relacionados com I Samuel 19 a 23 – Conflitos de
Davi com Saul
Salmo 18 – relacionado com I Samuel 24 – Davi poupa a Saul e
este interrompe a perseguição
Salmos 23 e 24 – relacionados com I Samuel 25 – Davi tem suas
necessidades supridas pela sabedoria de Abigail
Livro II
Relacionados com o reinado de Davi narrado em II Samuel
Lamento dos Salmos 54 a 64 relacionados ao conflito de Davi com
seu filho Absalão
Livro III
Pode remeter ao conflito do Reino do Norte com a Assíria
Salmo 78 – Possível ligação com a Queda de Samaria (Reino do
Norte)
Salmo 89 apresenta uma crise com sua possível solução
Livro IV
Começa com Salmo de Moisés (90)
Termina com a recapitulação da rebelião (106)
Aponta para esperança e restauração
Coleção de Salmos de louvor (95 a 100)
Afirmações de esperança e fé mantidas no exílio
Destacam a fidelidade de Javé, livramento, julgamento das nações
e soberania de Deus
Termina com uma coleção sobre o poder e misericórdia de Javé
(104 a 106)
Livro V
Gratidão dos israelitas por reuni-los após o exílio
A lei como fundamento da comunidade pós-exílica
Propósito e conteúdo
Com relação ao conteúdo, o livro de Salmos aborda os seguintes
temas:
Reconhecimento da soberania de Deus
As formas variadas de louvor em todas as situações
Vindicação dos justos e castigo dos ímpios
A natureza e a criação de Javé
O consolo de misericórdia de Javé em tempos de crise
O propósito de Salmos não está relacionado tanto com cada autor,
pois cada um tinha suas razões e motivos para compor sua poesia. Antes está
relacionado com a sua organização final, que tinha como objetivo mostrar a
historia de Israel sob a perspectiva da aliança de Javé com o povo hebreu.
O principio da retribuição: Segunda Parte
O princípio da retribuição pode ser declarado em duas sentenças:
O justo prosperará e o ímpio será castigado com sofrimento
Os que prosperam são justos e os que sofrem são ímpios
A primeira sentença é confirmada em todo o livro dos Salmos,
porém a exceção à esta regra também é ensinada. A segunda sentença, embora não
receba apoio bíblico, era senso comum entre os israelitas, pois se entendia
que, se Deus é justo como pode um justo sofrer ou um ímpio prosperar? Esta era
uma questão muito delicada para o israelita no Antigo Testamento, pois não
havia o conceito escatológico da esperança do céu.
Nos salmos de lamento o autor se queixa da prosperidade dos
ímpios e pede que Deus humilhe seus inimigos. Embora o salmista não se
considere plenamente justo, ele se considera mais justo do que aquele que não
temia a Javé. Por isso existem muitos salmos chamados imprecatórios (3, 28, 58,
109, 137). Nestes salmos vemos como o autor entendia o modo de Deus agir, pois,
para que a justiça de Deus se confirmasse, o ímpio deveria ser castigado. Posto
de outra forma, o pedido de castigo para o ímpio era a forma de o salmista
declarar o pecado daqueles que não andavam conforme a lei de Javé.
O livro de Salmos mostra que os justos podem esperar uma
retribuição de Deus por sua justiça, mas em nenhum lugar está mencionado que
não havia exceções a esta regra. A vida nem sempre é simples e a Bíblia não
apresenta uma regra de justiça que sempre funciona em todos os casos.
Reino
Nove salmos mencionam especificamente o rei: 2, 18, 21, 45, 72,
89, 110, 132, 144. Destes nove, quatro falam sobre Davi. Estes salmos são frequentemente
considerados messiânicos, isto é, sinalizam o reino eterno de um rei ideal da
linhagem davídica. Porém, estes salmos também podem se aplicar a qualquer rei,
pois citam o livramento, vitória e bênção para o rei que confia em Deus e segue
os padrões estabelecidos pela aliança. Este padrão foi verificado nos reis da
dinastia davídica que confiaram no Senhor, conforme relatado no livro dos Reis.
O Messias, em comparação com estes reis, seria perfeitamente justo e
desfrutaria de todas as bênçãos de Deus no seu reinado.
Criação
O povo hebreu era basicamente agrícola, e por isso dependia
muito das condições climáticas para assegurar sua produção de alimentos. As
bênçãos e maldições de Javé estavam ligadas à terra, que fazia parte da
aliança. Os deuses dos povos pagãos estavam ligados ao clima e era necessário
que o Deus dos hebreus estivesse fora desta regra teológica. Deus não estava
preso às forças da natureza, por isso, nos salmos que tratam sobre a criação
(8, 19, 29, 65, 104) Deus sustenta toda a criação (104), que revela a glória de
Deus (19). As forças da natureza são instrumentos de Deus (29, 65) e por isso
ele é glorificado acima da natureza, algo não possível nos sistemas religiosos
dos antigos povos pagãos.
Apóstolo. Capelão/Juiz. Mestre e Doutor em Ciências da Religião
Dr. Edson Cavalcante
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