ESTUDO PROFUNDO SOBRE MARIA MÃE DE JESUS CRISTO
1) Introdução
“Virgem Maria”, ou “Santa Maria”, são títulos possíveis para este artigo, títulos tão divulgados no mundo católico, para designar Maria a mãe de Jesus. Tanto podia ser Maria ou Miriam, pois o nome grego Maria, corresponde a “Miryâm” em hebraico que deu Miriam na nossa língua. Como os seus familiares falavam aramaico, é natural que o nome pronunciado na sua língua materna, fosse mais parecido com Miriam do que Maria.
Só no Novo Testamento, há várias mulheres com o nome de Maria, desde Maria Madalena, Maria irmã de Marta, Maria mãe de Marcos e ainda outras que aparecem só uma vez. Mas neste artigo, sempre que falar em Maria, refiro-me à mulher escolhida para ser a mãe de Jesus, no qual incarnou o próprio Filho de Deus, no mundo em que vivemos.
Neste estudo, embora privilegiando os textos bíblicos canónicos, faremos algumas referências às informações disponíveis nos apócrifos do Novo Testamento, assim como no Alcorão, que aliás, dá um grande destaque a Maria, que aparece em 30 referências, apresentando até a descrição do nascimento de Maria e nomes dos seus pais. Mas se Maomé viveu entre 520 a 632 da era cristã, tais informações só terão credibilidade admitindo que foram revelações divinas. É evidente que a aceitação dessas informações, que não constam dos textos canónicos neotestamentários, ficará ao critério do leitor.
Os teólogos católicos embora muito falem de Maria, geralmente perdem-se nas histórias das aparições e na sua teologia, sem grandes preocupações em investigar quem foi a verdadeira Maria das origens, a Maria que aparece nos evangelhos, enquanto o protestantismo pouco ou nada nos diz sobre Maria. Noto da parte das igrejas evangélicas ou protestantes um certo receio em abordar a pessoa de Maria. É muito vulgar nas escolas dominicais, o estudo dos vários personagens bíblicos, desde os apóstolos aos vários reis de Israel, mas é muito raro um estudo sobre Maria que sofre uma certa discriminação da parte dos evangélicos. Na própria Bíblia, há muito mais informação sobre os apóstolos, nomeadamente sobre Paulo ou Pedro do que sobre Maria. É por isso que até pensei em dar a este estudo, em que pretendo meditar em Maria com fundamento bíblico, o título de “Maria a desconhecida”, desconhecida pelos evangélicos e desconhecida pelos católicos.
Temos três ocasiões em que Maria se pode considerar o personagem principal da descrição bíblica: No anúncio do nascimento de Cristo, na visita à sua familiar Isabel, e de certa maneira na festa de casamento em Caná da Galileia.
Em toda a Bíblia, não há registo de milagres de Maria.
A verdadeira Maria tem de ser compreendida, não com a mentalidade dos católicos e muito menos com a mentalidade dos evangélicos ou protestantes, mas na cultura dos judeus que viveram há dois mil anos.
Este não é, ou pelo menos não pretende ser, um estudo sobre os habituais debates teológicos, se estará correcto o título de “Maria, Mãe de Deus” ou se Maria teve mais filhos além de Jesus… O que pretendo é saber como era a verdadeira Maria. Para isso, temos de nos integrar na sua cultura, temos de nos tornar como judeus do primeiro século para podermos compreender Maria no seu contexto histórico e cultural, antes de toda esta polémica sobre a sua pessoa, se levantar.
Devo dizer, nesta introdução, que este estudo poderá ser um tanto chocante, para quem não esteja familiarizado com o estudo e investigação bíblica, nomeadamente com a leitura de certas passagens da velha Lei de Moisés. Mas é nossa intenção investigar a pessoa de Maria na realidade em que ela viveu.
2) Origens de Maria
O personagem central de toda a Bíblia, nomeadamente do Novo Testamento, é Jesus o Cristo. Em Mateus 1:1/17 e em Lucas 3:23/38, encontramos a genealogia de José, marido de Maria. Neste caso em especial, gostaria de perguntar aos evangelistas: Afinal, que temos a ver com esta genealogia de José se ele não foi o pai biológico de Cristo, que nasceu por intervenção divina, segundo Mateus 1:18/20? Não seria mais natural uma genealogia de Maria? Isso foi certamente influência do contexto cultural judaico, que dava toda a importância ao homem, chefe de família e não à sua mulher ou mulheres, numa cultura em que a poligamia era permitida, e os sacerdotes davam o exemplo, como aliás quase todos os que consideramos os grandes exemplos veterotestamentários.
No Velho Testamento encontramos vários “ungidos” ou “cristos”, o que corresponde à palavra “messias” em hebraico como foi o caso dos reis de Israel. Mas Jesus, o filho de Maria, não foi mais um cristo ou ungido entre muitos, mas sim “o Cristo”, como aparece nas primeiras referências, sendo posteriormente omitido o artigo “o”. Logo no início do seu evangelho, João identifica Jesus como a Palavra de Deus, que criou todo o Universo. Se, como muitos pretendem, o nome de Jesus se refere ao homem, e o nome de Cristo ou Messias se refere à sua natureza divina, então o Cristo sempre existiu, mas veio ao nosso mundo através do homem, nascido de Maria, a que esta deu o nome de Jesus (Mateus 1:21 e Lucas 1:31). Não me parece correcto o título “Maria mãe de Deus” (Theotokos) que foi utilizado pela primeira vez, pelo bispo Nestório no Concílio de Éfeso no ano 431, título que era desconhecido no primitivo cristianismo. Até nem me parece correcto afirmar que Jesus foi judeu, já que Ele não foi filho biológico de José.
Infelizmente, não temos nenhuma genealogia de Maria, pelo menos nos livros canónicos. O livro apócrifo “Natividade de Maria” rejeitado por católicos e protestantes, também nada diz sobre a genealogia de Maria. A afirmação em Romanos 1:3, que se refere a Jesus como... nascido da estirpe de David segundo a carne, leva-nos a pensar que, se José não foi seu pai biológico, Jesus só poderia ser da descendência de David através de Maria. Mas penso que seria forçar um tanto a interpretação desta simples introdução da epístola aos Romanos, pois isto não é uma passagem didáctica sobre Maria e a informação é demasiado vaga, pelo que nem sabemos se Maria seria também descendente de David, embora essa hipótese seja bem possível.
3) Estado civil de Maria quando o anjo Gabriel lhe apareceu
Na primeira referência, que encontramos em Lucas 1:26/27, Maria está na Nazaré da Galileia quando o anjo Gabriel lhe aparece. Segundo algumas traduções estava casada com José e segundo outras traduções, estava noiva de José. Esta divergência é devido à dificuldade de tradução visto que estavam numa cultura muito diferente da actual.
Segundo o historiador Joaquim Jeremias, era habitual uma jovem ficar noiva aos doze ou doze anos e meio. Eram os pais que escolhiam o noivo, logo que a jovem se tornava sexualmente fértil e era frequente o pai querer um noivo da sua família e a mãe também um da sua família ou da sua tribo. Assim, como já dissemos, é bem possível que Maria fosse também descendente de David, mas por vazes havia casamentos com mulheres de outras tribos.
Transcrevemos o que afirma Joaquim Jeremias no seu livro “Jerusalém no tempo de Jesus”.
«O noivado que precedia o pedido de casamento e a execução do seu contrato, expressavam a aquisição (qinyan) da noiva pelo noivo, e, assim, a conclusão válida do casamento; a noiva passa a se chamar “esposa”, pode ficar viúva, é repudiada por um libelo de divórcio e castigada de morte em casos de adultério. É característico da situação legal da noiva que “a aquisição” da mulher e a do escravo sejam postas em paralelo. Adquire-se a mulher pelo dinheiro, contrato e relações sexuais; assim “adquire-se” também o escravo por dinheiro, contrato e tomada de posse...»
É esta a dificuldade em traduzir a situação de Maria na passagem que citamos em Lucas. Ela ainda não se tinha juntado a José e nem sabemos se tinha sido consultada pelos seus pais para esse casamento ou se alguma vez tinha visto a José. Mas, estar noiva nesse contexto cultural era quase o mesmo que estar casada. Possivelmente José já teria pago ao pai de Maria, a importância acordada entre ambos.
De acordo com o “Evangelho do Pseudo-Mateus”, Maria tinha 14 anos quando foi dada como esposa a José. Trata-se dum livro apócrifo, que não merece muita credibilidade, mas diz o que nesse contexto histórico e cultural era considerado a idade apropriada para o casamento.
4) O anjo Gabriel aparece a Maria
Esta passagem é bem conhecida de todos nós, mas por vezes não sabemos as suas implicações no contexto histórico e cultural em que Maria viveu. A mulher israelita era fortemente discriminada pala Lei de Moisés. Não podia herdar as terras do seu marido em caso deste falecer, e no Templo de Jerusalém, não podia ir além do “Pátio das Mulheres”. Não sabemos qual a preparação teológica de Maria, mas ainda hoje, nalgumas Sinagogas judaicas, a preparação dada aos meninos é diferente da que está disponível às suas irmãs.
Segundo nos informa Joaquim Jeremias, as mulheres das principais famílias de Jerusalém, no tempo de Jesus, muito raramente saíam de casa de seus pais. Só depois de casadas é que tinham autorização para sair à rua e mesmo assim, vinham com a cara tapada e tentavam passar despercebidas. No entanto, a mulher dos meios rurais, por necessidade de ajudar os seus familiares nos trabalhos agrícolas, tinha muito mais liberdade para sair de casa.
A intenção deste estudo é investigar a verdadeira Maria das origens, pelo que temos de mencionar alguns aspectos da vida das mulheres nesse contexto histórico e cultural em que o domínio romano impusera a liberdade de religião, acabando com o monopólio do judaísmo. Mas ainda predominava a religião judaica e o Templo de Jerusalém continuava como o principal centro religioso, político e económico.
Maria era uma jovem como muitas outras em Israel, trabalhadora e obediente aos seus pais. Estava noiva ou casada (já falámos nisso), com um carpinteiro, que era profissão prestigiada, acima do nível médio do povo de Israel. Tudo indicava que seria um bom casamento.
Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo. (vr.28)
A primeira reacção de Maria, quando o anjo Gabriel lha pareceu, foi certamente de espanto e algum receio, que foi notado pelo anjo que lhe disse: ... Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus. (vr.30)
Certamente que Maria já tinha ouvido, na Sinagoga da Nazaré, muitas descrições de aparecimentos de anjos, mas isso já não acontecia há muitos séculos, e mesmo antigamente, os anjos apareciam aos profetas, aos patriarcas, aos reis de Israel e muito raramente a uma mulher.
O pior deve ter sido o que vem nos versículos seguintes. Conceber um filho por meios sobrenaturais, que seria o próprio Filho de Deus.
Nós temos a reacção de meditar no assunto sob o ponto de vista da teologia, mas o pensamento inicial de Maria, foi certamente bem diferente, mais humano, pois ela viveu essa realidade.
Maria conhecia as Escrituras do seu tempo, o Velho Testamento. Certamente que deve ter pensado o que seria dela, se seu marido ou seus pais, quando a vissem grávida, não acreditassem no aparecimento do anjo Gabriel. Realmente, esta seria a hipótese mais provável. Qual seria a nossa reacção, se alguma jovem das nossas igrejas aparecesse grávida dizendo que um anjo lhe dissera que era Jesus que voltava por seu intermédio?!!
Temos de tentar compreender a verdadeira Maria, no seu contexto cultural veterotestamentário. Convido a ler o que dizia o Velho Testamento em Deuteronómio 22:22/29. Assim, atendendo ao estado civil de Maria, que era considerada como casada, a pena de morte seria o seu destino mais provável.
5) Viagem ao encontro de Zacarias e Isabel
Segundo Lucas 1:39/45 Maria, que estava em Nazaré, foi até uma cidade na região montanhosa de Judá. Não se sabe que cidade era essa, embora muitos estudiosos indiquem Ain Karim como a cidade mais provável, a 6 quilómetros a ocidente de Jerusalém.
Muitas vezes esta informação nos passa despercebida, ou pensamos que a casa de Isabel seria nas proximidades da sua, pelo que convido os leitores a olhar para o mapa de Israel. Isto é uma viagem de mais de 80 quilómetros em linha recta. Mas não era possível uma viagem em linha recta, não só devido ao acidentado do terreno, como pela necessidade de atravessar a Samaria. Geralmente os samaritanos atacavam os que passavam pelo seu território, principalmente quem fosse para Jerusalém.
Assim, pelo que vemos a partir do versículo 39, Maria seria no género de mulher dos meios rurais, inteligente e com muita iniciativa. É impensável que fizesse sozinha essa perigosa viagem à casa da sua familiar Isabel. Certamente que se integrou nalgum grupo de peregrinos a caminho de Jerusalém até atingir a tal “região montanhosa” onde vivia Isabel, numa época em que até para os homens era perigoso viajar sem ser integrado num grupo que se pudesse defender dos assaltantes. Geralmente caminhavam para nascente para depois seguir para sul, ao longo das margens do Rio Jordão. Assim os 80 quilómetros em linha recta ficariam em cerca de 120 a 150 quilómetros. Era mais ou menos a distância da Marinha Grande a Lisboa, só que em vez da hora e meia que demoramos pela auto-estrada, ou quase duas horas de autocarro expresso (ónibus), eles deveriam demorar alguns dias numa perigosa e cansativa viagem, alguns a pé, e outros montados em animais.
Só este pormenor, já nos mostra a grande iniciativa, coragem e resistência de Maria, certamente jovem habituada aos violentos trabalhos do campo que dificilmente posso identificar com a figura delicada de muitas imagens do catolicismo, fruto da piedade dos artistas.
Lucas não nos diz qual o motivo de Maria efectuar apressadamente esta longa e cansativa viagem a casa da sua parente Isabel. Será que Isabel, sendo mais velha, era a confidente ou conselheira de Maria? Certamente que, depois do aparecimento do anjo Gabriel, Maria sentia necessidade de contar a alguém de sua inteira confiança. Será que procurou em Isabel, o apoio que não encontrou em seus pais e temia não encontrar em seu marido? É muito natural que alguns dias depois, Maria ficasse com dúvidas sobre essa aparição tão estranha do anjo Gabriel. Será que sonhou? Ou foi mesmo realidade? Seria necessário confirmar essa visão. Talvez Maria tenha pedido ajuda ao Senhor para lhe confirmar essa visão.
É bem conhecido o encontro de Maria com Isabel e a revelação do Senhor a Isabel, segundo parece por esta descrição, antes mesmo de Maria contar que um anjo lhe tinha aparecido. Era a confirmação da aparição do anjo Gabriel, de que Maria tanto necessitava.
É depois de ouvir as palavras de Isabel que Maria pronuncia o que ficou registado em Lucas 1:46/56, palavras que a tradição designa por “Magnificat”.
6) Reacção de José quando soube que Maria estava grávida
Afinal, parece que os receios de Maria se confirmaram.
José tencionava casar com Maria, certamente para levar a vida sexual normal de todos os que se casam e nada nos indica que não fosse essa a intenção da própria Maria depois de cumprir a sua promessa de gerar o seu primogénito Jesus, sendo a “porta de entrada” do Cristo, do próprio Filho de Deus no nosso mundo. Essa atitude estava em perfeita sintonia com o contexto veterotestamentário, em que a mulher era tanto mais respeitada quanto mais filhos tivesse, principalmente se fossem meninos. Temos muitos exemplos bíblicos de mulheres que se sentiam infelizes por serem estéreis, nomeadamente a própria Isabel, familiar de Maria.
Perante a Lei veterotestamentária, José tinha o direito de reaver o que tivesse pago ao pai de Maria, e esta seria levada aos Juízes da porta da cidade de Nazaré, que lhe aplicariam o que está estabelecido em Deuteronómio 22:23/24. Era portanto a pena de morte por lapidação para Maria.
Penso que Mateus, ao escrever o seu evangelho, foi muito moderado ao limitar-se a dizer que José “...como era justo...”, não quis levantar escândalo e tencionava simplesmente abandonar Maria e esquecer o problema. Para os primeiros leitores do evangelho de Mateus, bem integrados na cultura judaica, não era necessário dizer mais nada, pois todos sabiam perfeitamente da gravidade do suposto adultério nessa cultura. Mas na nossa cultura, vinte séculos mais tarde, já nem todos conhecem estes pormenores.
Assim, foi necessária a intervenção dum anjo que falou a José, pois certamente que só o testemunho da própria Maria não seria aceite.
José aceitou o testemunho do anjo. Penso que pouco se tem falado de José, nas igrejas evangélicas e mesmo entre os católicos, que tanto falam de Maria, pouco se fala de José. Mas, se Maria foi escolhida, José também foi escolhido por Deus, pois a sua reacção não é a dum homem vulgar se atendermos ao contexto cultural em que eles viviam.
7) Nascimento de Jesus, o Cristo
Já muito se tem falado sobre o Natal, e temos alguns artigos sobre o assunto nesta página da internet. Mas, como Maria é o objectivo deste artigo, vou limitar-me a mencionar os factos com ela relacionados.
Já nos referimos à distância e perigos desta viagem da Nazaré até à Judeia, mas desta vez, embora acompanhada por José, certamente muito mais difícil devido ao seu adiantado estado de gravidez. Se Maria não fosse uma jovem forte e saudável, muito dificilmente conseguiria sobreviver a tal viagem.
Foi nessa altura, em Belém da Judeia, que Jesus nasceu. Pela descrição, não se sabe quanto tempo antes ou depois do recenseamento nasceu Jesus, nem se o seu nome foi registado pelos funcionários romanos encarregados do recenseamento da população.
O comportamento de José e Maria, para com o menino, foi o vulgar como judeus que eram. Segundo Lucas 2:21, circuncidaram o menino ao fim de oito dias e posteriormente, supõe-se que aos 33 dias, ofereceram o sacrifício de purificação prescrito em Levítico 12 a fim de Maria deixar de se considerar imunda pela Lei de Moisés.
De acordo com o evangelho de Lucas, depois destes acontecimentos, Maria regressa a sua casa em Nazaré e não há mais informação até uma outra viagem a Jerusalém, 12 anos mais tarde.
Não sabemos quanto tempo Maria ficou em Belém, em casa dos familiares de seu marido, mas o evangelho de Mateus menciona a visita dos magos do Oriente, que devem ter chegado certamente muitos meses mais tarde, o que é confirmado pela decisão de Herodes de mandar matar, não só os bebés recém-nascidos, mas todos os meninos até aos dois anos. Não há mais informação sobre a estadia de Maria no Egipto além do que Mateus nos indica.
Lendo Lucas 2:39/40, parece-me que este evangelista, que logo no início do seu Evangelho afirma que foi investigar cuidadosamente todos os factos que menciona, não terá dado muita credibilidade à visita dos magos, matança das crianças e fuga para o Egipto. Também me parece pouco credível, uma estrela, ou qualquer planeta ou cometa, indicar o caminho sem ser afectado pelo movimento de rotação da terra e parar em determinado lugar. Mas não é intenção deste estudo abordar estes pormenores.
8) Episódio aos 12 anos de Jesus
Para o nosso estudo sobre Maria, é muito importante a afirmação que encontramos logo no versículo 41. José e Maria iam todos os anos a Jerusalém, o que nos leva a imaginar uma mulher do campo, habituada a longas caminhadas. Nessa altura (é fácil fazer as contas), Maria teria entre 25 a 30 anos. Talvez fosse parecida com muitas mulheres portuguesas que vemos nas nossas estradas a caminho de Fátima, mas sem a segurança dos nossos dias. Em vez dos carros de apoio dos familiares e do apoio médico pelo caminho, havia os assaltantes nos locais mais perigosos, pois muitos desses peregrinos levavam as suas valiosas ofertas para o Templo de Jerusalém.
De acordo com a teologia veterotestamentária, era no Templo de Jerusalém que se devia adorar a Deus, pois era essa a morada de Deus e o local onde Deus de manifestava. Só no Templo de Jerusalém se podia oferecer sacrifício se animais. O Templo que os samaritanos construíram em Gerizim, para cultuar ao mesmo Deus, foi atacado e destruído pelos judeus em 129 AC, para manter o monopólio religioso do Templo de Jerusalém, certamente com todas as suas consequências económicas.
Certamente que ninguém reparava no menino que com eles caminhava e que iria tornar obsoletas todas essas peregrinações ao revelar o Deus omnisciente e omnipresente que pode e quer ser adorado em todo o lugar.
Mas, como vimos nesta descrição de Lucas, alguma coisa aconteceu numa dessas peregrinações a Jerusalém quando Jesus atingiu os 12 anos, idade que pela tradição judaica era considerado o início da maturidade religiosa.
Parece estranho nos nossos dias, que José e Maria tenham caminhado durante um dia, sem darem pela falta de Jesus. “Mas de desleixados!!!...”, podemos pensar.
Realmente, isso seria impensável nos nossos dias. Mas nessa realidade, podemos imaginar um grande grupo de peregrinos em que as mulheres caminham conversando alegremente, as crianças juntam-se para as suas brincadeiras e os homens colocados em posições estratégicas para a defesa do grupo. Certamente que nem José, nem Maria se preocuparam com Jesus, que nessa altura já não era nenhum bebé, nem criancinha pequena que se pudesse perder. Já era um menino de 12 anos, forte, saudável e muito inteligente que já não corria o perigo de se perder.
A reacção de José e Maria, foi a mesma de qualquer pai e mãe dessa época. Voltaram apressadamente a Jerusalém. Possivelmente voltaram sozinhos, correndo o risco de serem assaltados na estrada que subia de Jericó a Jerusalém, local de alto risco onde Jesus, anos mais tarde, localiza a parábola do Bom Samaritano. Lucas diz que durante três dias procuraram Jesus em Jerusalém. Certamente que o devem ter procurado em primeiro lugar em casa dos seus familiares e pelas estreitas e sinuosas ruas dessa velha cidade.
Só ao terceiro dia, se lembraram de procurar no Templo. O versículo 48 apresenta uma típica repreensão que qualquer mãe daria ao seu filho, e o versículo 50 confirma que nem José, nem Maria compreenderam a atitude de Jesus, que consideraram condenável, muito menos compreenderam a resposta que Jesus lhes deu.
9) Festa de casamento em Caná da Galileia
É esta a passagem seguinte, por ordem cronológica, em que temos uma referência a Maria. O evangelista João, que considero o mais importante sob o aspecto de teologia, não se preocupa muito em descrever os milagres de Jesus, mas este ficou registado no seu evangelho afirmando no versículo 11 que foi o primeiro dos sinais de Jesus, realizado em Caná da Galileia, que ficava a cerca de 14 quilómetros da Nazaré.
Temos aqui alguns pormenores que considero estranhos.
Logo no primeiro versículo temos a informação de que a mãe de Jesus estava lá, e no seguinte versículo, que Jesus foi convidado com os seus discípulos. Não há qualquer referência a José, o que nessa cultura, seria imperdoável se José ainda estivesse vivo. Nesse caso, se José ainda estivesse vivo, bastaria convidar José, que Maria, e todos os seus filhos estariam certamente incluídos no convite para o casamento. Não sabemos que casamento era este, mas se Maria lá estava, e se houve a preocupação de convidar Jesus, penso que seria o casamento de algum dos seus familiares. Parece que Maria se sentia “em sua casa”, a ponto de dar instruções aos criados.
Nessa época, se Jesus já tinha mais de 30 anos, Maria seria certamente uma respeitável anciã de 45 a 50 anos, possivelmente já de cabelos brancos, num país e numa época em que a longevidade era certamente muito menor que nos nossos dias.
Embora o apóstolo João nos diga que esse foi o “princípio dos sinais”, a atitude de Maria ao pedir a intervenção de Jesus, leva-nos a pensar que ela já sabia que Jesus tinha poder para resolver o problema, e a resposta de Jesus vem confirmar que, de certa forma Maria sugeriu que utilizasse os seus poderes sobrenaturais. Temos depois o versículo 5 “Fazei tudo o que ele vos disser”, o que nos leva a suspeitar de que já houvesse outros milagres antes deste. O livro apócrifo do Novo Testamento que já citámos, “Natividade de Maria”, faz referência a várias manifestações dum poder sobrenatural na infância de Jesus. Por exemplo em 27:1 cita o caso dos pássaros moldados em barro que Jesus transformou em verdadeiros pássaros, e até o Alcorão no versículo 49 da 3ª surata e no versículo 110 da 5ª surata faz referência a este milagre. Mas na literatura canónica da Bíblia, não há dúvida de que este é o primeiro milagre que é referido.
Maria, que é o personagem que estamos a estudar, manifesta confiança no poder de Jesus, mas ao memo tempo Jesus tem de lhe responder com uma certa frieza, como vemos no versículo 4 “Que queres de mim, mulher?” ou como está em outras traduções “Que há entre mim e ti?”. É verdade que muitos tradutores tentam atenuar a frieza desta resposta, afirmando que era uma frase típica dessa cultura, sem o significado que tem na nossa língua, mas a passagem que iremos ver a seguir parece confirmar um gradual distanciamento entre Jesus e Maria, certamente necessário para que Maria sentisse que Jesus já não era o “seu menino” que lhe estava sujeito. Parece que gradualmente o “menino Jesus”, filho de Maria, dava lugar ao Cristo, Filho de Deus, com uma importante missão a cumprir.
Mas, pelo menos nesta ocasião, Maria foi bem humana e estamos perante um caso típico de todas as mães, para quem o seu filho será sempre o “seu menino”.
Maria aceitou a forma como Jesus lhe respondeu, e manteve humildemente a sua confiança, ao dizer aos criados “Façam tudo que ele lhes disser”.
Essa submissão à decisão de Jesus, não era simplesmente fruto desse contexto cultural, em que toda a autoridade e poder de decisão era do chefe da casa, que (admitindo que José já tinha falecido), seria o próprio Jesus. Penso que Maria já via em Jesus alguém capaz de realizar milagres, possivelmente um dos profetas, ou talvez se lembrasse do anjo Gabriel que lhe disse que o seu próprio filho seria o “Filho do Altíssimo”.
10) Família carnal e família espiritual de Jesus
Marcos 3:20/35 e passagens paralelas em Mateus 12:46/50 e Lucas 8:19/21
A descrição mais elucidativa é a de Marcos. Mas temos de realçar o facto deste acontecimento ter sido registado por três dos quatro evangelistas.
Jesus voltou para a “segurança” da casa de seus pais, mas a sua fama já se tinha espalhado e a enorme multidão, que o seguia, entrou em casa de tal maneira que nem podiam comer.
Diz o versículo 21 da passagem que lemos em Marcos, que “os seus” procuravam prender a Jesus, dizendo que tinha enlouquecido.
Pelo contexto desta afirmação, é fácil concluir que “os seus” que procuravam prendê-lo, não eram os apóstolos, mas os seus familiares, cuja descrição mais pormenorizada está no versículo 32 “Eis que tua mãe e teus irmãos...”.
A palavra que foi traduzida por irmãos, não significava necessariamente filhos da mesma genitora, facto que leva os teólogos católicos a afirmar que se tratava de primos ou familiares muito próximos, enquanto os teólogos ortodoxos, geralmente afirmam que eram filhos dum primeiro casamento de José.
Devo dizer em primeiro lugar, que considero esse pormenor, perfeitamente secundário. Mas não vejo qualquer base bíblica para dar à palavra irmãos outro significado que não seja o vulgar, de filhos de José e Maria. Nós hoje diríamos: Filhos legítimos de José e Maria. Mas é interessante que aquilo que nos nossos dias pode ser um escândalo para alguns, é um pormenor dignificante no contexto cultural em que Maria viveu. Nessa época, ela já era uma respeitável anciã acompanhada pelos seus filhos e filhas. Se dissermos que eles não eram seus filhos, porque só teve um único filho, na sua cultura, estaremos a diminuir a pessoa de Maria.
Como vimos pela descrição de Marcos (vr.21) tanto Maria como os seus filhos, julgaram que Jesus tivesse enlouquecido e vieram para o prender, certamente com boas intenções. Eles conheciam bem a Jesus, e já se começava a formar o grande confronto entre a mentalidade veterotestamentária, dum deus cruel, racista e machista, e a verdadeira imagem de Deus, que o seu próprio Filho viera apresentar.
Num caso destes, a única pessoa que, de acordo com as tradições judaicas, teria autoridade para tentar afastar Jesus do seu objectivo, seria José. Mas nunca mais se encontraram referências a José, pelo que temos de admitir que já teria falecido. Assim, o chefe da família seria o próprio Jesus, o filho primogénito. Julgo ter sido esse o motivo de toda a família se juntar, para o ir buscar.
Nessa ocasião, Jesus era acusado de blasfémia pelos principais do seu povo e até os seus irmãos zombavam dele João 7:3/5. Jesus era demoníaco para os sacerdotes e louco para os seus familiares. Mas por outro lado, tinha a confiança dos seus apóstolos e o apoio entusiástico da imensa multidão de discípulos cujo número aumentava constantemente.
Como entender a atitude de Maria nesta ocasião? Os evangelhos não nos esclarecem sobre este pormenor e é bem possível que ninguém saiba. Mas temos várias hipóteses:
Ou Maria se tinha esquecido das palavras do anjo Gabriel sobre o destino de Jesus, ou viera para evitar que os outros filhos usassem de violência para com Jesus, ou lembrava-se perfeitamente das palavras do anjo Gabriel e era precisamente esse destino de Jesus que mais a atormentava e, como mãe, queria afastar Jesus do seu destino, ou talvez a hipótese mais provável, depois do falecimento de José, estava desorientada, incapaz de tomar uma decisão tão difícil e viera, sem saber bem por quê nem para quê.
Podemos não concordar com a atitude dos familiares de Jesus, mas nós estamos comodamente a vinte séculos de distância e se tentarmos imaginar a realidade que viveram, não podemos deixar de nos comover com a situação desta mãe que vê o “seu menino” a desafiar os mais poderosos da terra e a preparar o que ela sabia ser o seu fim.
A resposta do Mestre a quem lhe disse que os seus familiares o procuravam, é em primeiro lugar uma ruptura com toda a mentalidade veterotestamentária que dava grande importância à genealogia e aos laços familiares. Jesus não nega a importância da família, mas apresenta outros valores muito superiores. Um novo conceito de família espiritual se sobrepunha à família natural. Pois aquele que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe.
11) Maria na crucificação de Cristo
25. Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas e Maria Madalena. (segundo a tradução da Bíblia de Jerusalém). Há uma certa divergência na interpretação deste versículo no grego, que não é bem claro. O nome de Maria era muito vulgar, pelo que há quem diga que se trata de três mulheres e não quatro ou cinco, como parece na nossa língua, pois a outra Maria, poderia ser a irmã de sua mãe e ser também a mulher de Clopas. Mas neste estudo, o que mais nos importa é que Maria, a mãe de Jesus estava junto à cruz, e assistiu à morte de seu filho.
Em certas passagens dos evangelhos aparecem pequenas referências a um grupo de mulheres que seguia o Mestre desde a Galileia. Lucas 23:49 Penso que, devido ao contexto cultural em que se encontravam, que não dava grande importância às mulheres, estas fiéis servidoras de Jesus terão passado despercebidas. Mas, vemos aqui, que esse grupo de mulheres corajosas, inteligentes, algumas com posições importantes na sociedade em que estavam, se mantiveram firmes até ao fim. Mesmo depois do grupo dos apóstolos se dispersar, menos o apóstolo João, apesar de todos os perigos, elas continuaram ao pé de Jesus, assistiram à sua morte e continuaram prontas para o servir.
26. Jesus, então, vendo sua mãe e, perto dela, o discípulo quem amava, disse à sua mãe. “Mulher, eis o teu filho. 27 Depois disse ao discípulo: “Eis a tua mãe!” E a partir dessa hora, o discípulo a receber em sua casa.
Esta é uma das cenas mais dolorosas de toda a Bíblia. Maria assistindo à morte do seu próprio filho.
Através dos tempos, esta passagem bíblica tem servido para tema de muitas reflexões da teologia e muitos artistas, desde a Idade Média têm tentado retratar o que se passou. Mas, fiquemos só com a descrição bíblica. Isto nos basta. O evangelho de João, é o único que nos descreve esta cena, pois todos os outros já se tinham dispersado e possivelmente, João é o único discípulo que ficou junto à cruz até ao fim, para poder registar o que se passou.
Mulher, eis o teu filho. Porque é que, pelo menos nesta ocasião, Jesus não tratou a Maria por mãe?
Penso que o “menino Jesus” que nasceu em Belém e que inicialmente estava sujeito a seus pais Lucas 2:51, gradualmente foi dando lugar ao Cristo, o Filho de Deus. Maria assistia à morte do seu filhinho o homem chamado Jesus que dava lugar ao Filho de Deus com todo o seu poder Mateus 28:18. É bem possível que nessa ocasião, Maria se lembrasse das palavras de Simeão ... e a ti, uma espada traspassará tua alma... Lucas 2:35
Mesmo nos últimos momentos, Cristo manteve toda a sua lucidez. Não deixou de se preocupar com o ladrão que se arrependeu na hora da morte e também se preocupou com Maria, que o trouxe a este mundo.
Preocupou-se com o futuro de Maria, mas em que aspecto?
Certamente que as fiéis seguidoras do Mestre, não deixariam Maria desamparada a ponto de passar fome e a não ter onde morar. Também a velha Lei e as tradições judaicas, tinham solução para estes casos. Era aos irmãos de Jesus que competia o sustento se sua mãe. O problema não era económico. A preocupação de Cristo era outra, era encontrar alguém que a pudesse ajudar no aspecto material e que a pudesse compreender.
Depois de Maria assistir à crucificação de Cristo, não podia voltar para casa dos outros filhos que zombavam da mensagem do Mestre João 7:3/5. Era necessário providenciar alguém que a pudesse compreender, alguém da “família espiritual” Marcos 3:35 e o apóstolo João, foi o escolhido.
12) Depois da ressurreição de Cristo
Esta é a última referência a Maria.
Lucas apresenta uma descrição do ambiente na igreja inicial, a Igreja de Jerusalém.
Como é natural nessa cultura, descreve em primeiro lugar, os principais responsáveis, todos homens, mas depois abre uma excepção, apresentando “ ...algumas mulheres, entre as quais, Maria, a mãe de Jesus com os irmãos dele.” Era certamente o tal grupo das fiéis servidoras do Mestre, e Maria ocupara o seu lugar no meio delas.
Pessoalmente, penso que não era de maneira alguma a poderosa Santa, como muitos pretendem, mas era a verdadeira mulher, como Jesus a tratou, que faria com que todas as mulheres se orgulhassem nela, que nos dava o seu exemplo de serviço e de humildade.
Era a ferramenta nas mãos do Senhor que já cumprira a sua função e nada mais lhe restava que dar graças a Deus por lhe ter dado essa maravilhosa oportunidade de o servir.
13) Conclusão
Terminamos pedindo ao Senhor que este artigo possa contribuir para um melhor conhecimento de Maria, um dos mais importantes personagens da Bíblia a que os evangelhos não deram maior destaque devido ao contexto cultural em que foram escritos, e que tem sido esquecida por católicos e protestantes.
O povo católico, duma maneira geral, com a sua ênfase em exaltar os atributos de Maria, acaba por a imaginar quase como um ser angelical que já pouco ou nada tem a ver com a verdadeira Maria na dura realidade do mundo em que vivemos.
O povo protestante ou evangélico, de certa maneira sofre a influência do catolicismo caindo para o extremo oposto, acabando por discriminar Maria, que nunca é mencionada.
Assim, penso que todos nós, perdemos a bênção de conhecer a verdadeira Maria, que consagrou toda a sua vida ao Senhor, que pode servir de exemplo para todo o crente, em especial à mulher cristã, porque foi bem humana, que viveu no nosso mundo, que foi discriminada no mundo dos homens, que se alegrou e que sofreu, que foi incompreendida (será que ainda é?), que se sentiu perdida, que procurou o apoio que não lhe deram, que teve dúvidas e que por vezes fracassou, mas que se manteve sempre fiel ao Senhor, que foi precisamente aquilo para que se ofereceu em Lucas 1:38 ... Eu sou a serva (ou escrava) do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra.
Apóstolo. Capelão/Juiz. Mestre e Doutor em Ciências da Religião Dr. Edson Cavalcante
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