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sábado, 6 de junho de 2020

MEU REINO NÃO É DESTE MUNDO


MEU REINO NÃO É DESTE MUNDO
Mateus 6.9-15

Introdução
Tem sido comum a interpretação de que, quando falamos de graça comum, mandato cultural e temas relacionados, estamos, na verdade, tentando encontrar uma justificativa para o envolvimento pecaminoso com o mundo.

A fé reformada reconhece a ação graciosa de Deus dentro e fora da igreja (graça comum) e entende o comissionamento bíblico para que o crente exerça domínio sobre a cultura. Mas existe uma oposição que não se dá entre Ciência e Religião, mas sim entre crenças diferentes. Chamamos essa divergência de antítese.

A antítese é um contraste ou oposição entre duas ideias e, neste nosso estudo, significa uma dualidade na cultura, ou seja, uma cultura crédula em oposição a uma cultura apóstata. Por que isso ocorre? Porque não há comunhão espiritual entre o crente e o ímpio (2Co 6.15). Analisando esse contraste mais profundamente, podemos falar de uma antítese absoluta, que permeia a existência total, que não deixa área alguma da vida intocada.

I. O reino de Deus versus o reino deste mundo
Não é bíblica a ideia de uma equivalência entre Deus e Satanás, entre o bem e o mal. O conceito bíblico de antítese, amplamente defendido por Abraham Kuyper, no século 19, refere-se à hostilidade que Deus estabeleceu entre a semente da mulher e a semente da serpente.

A semente da mulher tem seu cumprimento cabal em Cristo (Gn 3.15 aponta para Jesus), mas aplica-se também a todos aqueles que se tornam seu corpo: a Igreja. A semente da serpente são todos aqueles que vivem em inimizade com Deus e que persistem em sua apostasia fora da aliança.

Agostinho trabalhou com conceito semelhante para compor a obra A Cidade de Deus (De Civitate Dei), onde apresenta forças espirituais (as duas cidades) em oposição. Porém, quando a Igreja se torna secularizada e toma a forma do mundo (contra Rm 12.2), não percebe a antítese.

Outra forma de entender a antítese é a proposta pelo Dr. Gerard van Groningen, que explica a tensão entre os reinos mencionando o reino parasita que se instalou no reino de Deus. É parasita porque não tem vida própria e prejudica a saúde de seu hospedeiro.

A. Filhos da luz versus filhos das trevas
Se existem dois reinos em oposição, logicamente seus súditos estão em constante conflito, o que é claramente delineado nos fatos descritos pelas Escrituras:

O assassinato de Abel por Caim.
Noé, pregador da justiça, “aparelhou uma arca para a salvação de sua casa; pela qual condenou o mundo” (Hb 11.7).
José estava predestinado a exercer domínio sobre seus irmãos.
O povo hebreu sofre nas mãos dos Faraós do Egito.
Davi batalha contra os filisteus e é perseguido Saul.
Os judeus quase são exterminados devido ao plano de Amã.
O menino Jesus, alvo da ira assassina de Herodes.
Todos os que estão em Cristo, o segundo Adão, estão vivos diante de Deus e são, portanto, chamados a essa batalha da qual a Bíblia fala (Ef 6.10ss.; Rm 7.15-25; 1Co 1.18-39; 2.6-16; 16.22; 2Co 4. 3-6; 6. 14-18; 10. 3-6). Cristo é o Mantenedor da aliança, o Restaurador da Lei, a raiz da humanidade restaurada, e sempre responsável pela criação e manutenção de reino e súditos. Aqueles que não foram restaurados continuam a existir em apostasia a Deus.

A disputa está enraizada no coração e afeta a vida inteira de todos os homens. Nem um único aspecto da vida, até mesmo aquele que parece mais “neutro”, fica fora dessa antítese.

O entendimento da soberania de Deus sobre toda a criação é importante e cheio de implicações. O senhorio de Jesus não é parcial, pois se estende à totalidade da criação de Deus. Este mesmo Deus proclamou a antítese no paraíso: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente” (Gn 3.15). O Filho de Deus confirmou essa proclamação quando disse: “O meu reino não é deste mundo” (Jo 18.36); e “Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada” (Mt 10.34). Jesus foi odiado por este mundo e assim também serão seus discípulos (2Tm 3.12).

O ódio do mundo em relação à Igreja não deve nos causar nenhuma surpresa (1Jo 3.13), pois é uma manifestação da oposição entre os reinos e se dá tanto no campo das religiões quanto no campo da cultura. Esse ódio nem sempre é expresso em perseguições e mortes; pode ser bem mais sutil: quando despreza o conceito bíblico de família, quando nega a realidade do pecado, quando tenta destruir a doutrina bíblica da Criação, quando nega a realidade sobrenatural das Escrituras, mas estimula ao esoterismo e misticismo, ou quando insiste no discurso da cultura “neutra”.

A obra de Abraham Kuyper se tornou extremamente relevante porque recolocou essa compreensão bíblica na pauta do debate teológico contemporâneo, defendendo que essa é a maneira correta de tentar ler nossa época e oferecer resposta cristã para nossa cultura. A disputa real ocorre em uma dimensão mais profunda do que estamos acostumados a enxergar. “… o conflito não é entre fé e ciência, mas entre a afirmação de que o cosmos, como existe hoje, está numa condição normal ou anormal. Se ele é normal, então ele se move por meio de uma evolução eterna de suas potências até seu ideal. Mas se o cosmos em sua presente condição é anormal, então um distúrbio aconteceu no passado, e somente um poder regenerador pode garantir o alcance final de seu alvo. (…) Portanto, nem a fé nem a ciência, mas dois sistemas científicos ou se vocês preferirem, duas elaborações cientificas são opostas uma a outra, cada uma tendo sua própria fé. Nem pode ser dito que é aqui que a Ciência se opõe à Teologia, pois temos de tratar com duas formas absolutas de Ciência, ambas as quais reivindicam o domínio completo do conhecimento humano e ambas as quais têm uma sugestão acerca de seu próprio Ser supremo como o ponto de partida para sua cosmovisão” (Kuyper, 2002, p.138-139).

Há uma autêntica oposição contra a Igreja, dada a própria natureza do diabo, apesar de a Igreja viver perigosamente, como se estivesse em trégua com Satanás. Ele não dá trégua, pois veio somente para roubar, matar e destruir (Jo 10.10), rodeando à procura de alguém para devorar (1Pe 5.8), sem poupar velhos ou crianças (Mc 9.20-22), tentando até Jesus (Mt 4.1-11), contribuindo para que os seres humanos busquem em primeiro lugar a própria glória e não o reino de Deus (Gn 3).

B. Não existe meio-termo
No Antigo Testamento, o profeta Elias se levantou como alguém que tem consciência da antítese em tempos de apostasia. O povo estava dividido entre dois pensamentos, e o profeta cobrou um posicionamento: se Yahweh é Deus, então o povo deveria segui-lo; se Baal é Deus, então que seguissem a Baal (1Rs 18.20-22). A neutralidade é impossível. A covardia do povo está em contraste com a coragem de Elias, que, sozinho, lutou em defesa de sua posição de que só Yahweh é o verdadeiro Deus (que é o significado do nome Elias). Jezabel, por outro lado, defendia que Baal também era deus e tinha direito de igualdade com o deus dos hebreus. Porém, o verdadeiro Deus, que criou o sol e que teve poder para destruir Sodoma e Gomorra com fogo, enviou fogo dos céus no Monte Carmelo (1Rs 18. 23-40). Jezabel, então, tentou matar Elias (1Rs 19.1-3).

No Novo Testamento, a batalha continua, mas em um modo de luta diferente, não mais física, em que os inimigos da aliança são exterminados. É uma luta espiritual (Ef 6.10-20; 2Co 10.5) que, na verdade, sempre foi o verdadeiro conflito, desde antes da criação.

II. O que significa reino de Deus?[1]
Não podemos ser seguidores fiéis de Cristo, o Rei, sem sermos cidadãos fiéis de seu reino e saber o que isto significa. Há muito material nas Escrituras que trata dessa temática do reino. Jesus enfaticamente chama atenção para este assunto: “Buscai (…) em primeiro lugar, o seu reino” (Mt 6.33). Isto mostra o relacionamento entre o reino de Deus e a vida cristã. Desse modo, Jesus ensina que devemos ter uma compreensão apropriada a respeito da natureza de nossa atitude como cidadãos do reino de Deus.

O reino de Deus pode ser entendido como aquele reino sobre o qual o Rei designado por Deus – Jesus – está presentemente reinando por meio e na vida de seu povo, realizando sua vontade “na terra como no céu” (Mt 6.10).

Os escritores do Antigo Testamento compreendiam a centralidade e a abrangência do reino. Davi, por exemplo, orava: “Teu, Senhor, é o reino” (1Cr 29.11; Sl 103.19). O reino também aparece descrito nas visões de Daniel (Dn 7.27).

No Novo Testamento, a mensagem do reino é central nas primeiras pregações de João Batista e de Jesus (Mt 3.2; 4.17). Após sua ressurreição, a temática do reino continua a ser ênfase nas palavras de Jesus aos discípulos (At 1.3).

Filipe (At 8.12), Paulo (At 20.25; 28.31), o autor de Hebreus (Hb 12.28), Tiago (2.5) e Pedro (2Pe2.11) também falaram das dimensões eternas desse reino já presente. Porém, a mais completa descrição do reino de Deus nos é dada por Jesus no Sermão do Monte (Mt 5–7), onde ele nos mostra como devemos viver no reino que ainda está sob influencia do pecado. O reino de Deus é esta realidade em que seus súditos desejam morrer para o mundo. Por isso, quando os cristãos repetem a oração ensinada por Jesus, pedem: “Venha o teu reino” (Mt 6.10). “…não estão pedindo para que o reino de Deus materialize a sua existência. O reino de Deus sempre existiu, desde a eternidade. Ele estava presente na criação quando Deus, o Rei, disse “Façamos”, e então passou a criar plantas e o reino animal para que estes se enquadrassem dentro do seu reino. O reino de Deus estava presente no paraíso quando nossos primeiros pais se voltaram contra ele. Desde então, as pessoas têm se revoltado regularmente contra a soberania divina ou a ignorado. É por isso que Jesus ensinou aos seus discípulos para orarem por um milagre: que as pessoas parassem de se rebelar contra a vontade de Deus, deixassem de ignorá-lo e, em vez disso, tentassem se conformar à vontade de Deus. Na oração do nosso Senhor, “o teu reino” significa “Faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu”. Para que isso aconteça, os corações devem estar regenerados e muitas outras coisas devem ocorrer, além disso” (Plantinga Jr, p. 108).

A confissão da antítese como fato e princípio não constitui uma negação da doutrina da graça comum, pois essas doutrinas são correlativas na revelação. Crentes e incrédulos possuem muito em comum: ambos possuem a natureza humana, são portadores da imagem de Deus, são pecadores, respondem à pregação do evangelho (os eleitos respondem positivamente) e ambos compartilham o mundo físico inteiro no tempo e no espaço, o mandato e as exigências culturais, o terreno no qual devem trabalhar e desenvolver a vida de interação social.

Com isso, queremos dizer o seguinte: existe dignidade – que deve ser reconhecida – em qualquer trabalho humano dado por Deus, não havendo a necessidade de rotulá-lo de “cristão” para que haja a interação entre os reinos. Uma fábrica de automóveis, por exemplo, mesmo não sendo de propriedade de um cristão e tendo, na sua maioria, empregados não cristãos, preserva honra porque se tornou realidade graças ao mesmo Deus que criou e sustenta a Igreja. Mas Caim é sempre Caim, e a cidade do homem jamais se torna a cidade de Deus, até o final da História.

Conclusão
Reconhecer a antítese não significa promover violência contra os não cristãos. O deus deste século cegou o entendimento deles, e nós não sabemos quem são os salvos e quem não são. Embora seja preciso tomar posição, nosso discurso a respeito da verdade deve ser feito sempre em amor, alicerçado na certeza de que o Espírito é quem concede o convencimento.

Não é à toa que Paulo fala de uma armadura espiritual (Ef 6.10-20), cujas partes jamais podem ser tratadas como itens de decoração ou artigos de colecionador. A Igreja de Cristo está em constante antítese contra o reino deste mundo.

Talvez você esteja se perguntando como combater esse combate. A resposta é bem simples: precisamos orar mais, dedicar mais tempo à leitura da Palavra, nos esforçarmos para falar de Jesus a um número cada vez maior de pessoas e investir tempo no discipulado de novos convertidos.
Apóstolo. Capelão/Juiz. Mestre e Doutor em Ciências da Religião Dr. Edson Cavalcante

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