EU E O MEU LIVRE ARBÍTRIO
Romanos 6.1-14
Introdução
Quem nunca ouviu falar em livre-arbítrio? A palavra é conhecida, mas seu significado pode ser desconhecido pela maioria das pessoas, que a utilizam assim mesmo. O conceito dessa palavra é tão importante que, quando entendido corretamente, pode causar grande confusão. Foi o que ocorreu na época da Reforma Protestante. Depois de ter afixado nas portas da catedral de Wittenberg suas 95 teses, Martinho Lutero precisou debater com Erasmo de Roterdã sobre livre-arbítrio. Ele até escreveu um livro muito conhecido intitulado A escravidão da vontade, no qual argumentou contra a Igreja Católica Apostólica Romana e expôs as ideias bíblicas sobre livre-arbítrio.
Para Lutero, era impossível conciliar o verdadeiro evangelho da graça de Deus com a ideia de livre-arbítrio pregada e crida na Igreja Católica. Por causa disso, Lutero foi excomungado e tratado como herege, mas, apesar disso, ele abriu as portas para um movimento de retorno às Escrituras, o que permitiu a compreensão desse tema tão importante, à luz da Palavra de Deus.
I. O que é livre-arbítrio?
Popularmente, livre-arbítrio é entendido como a possibilidade do homem de fazer escolhas de forma “livre”, ou seja, o homem pode fazer o que quiser, e isso o tornaria livre de qualquer influência, até mesmo de Deus. É como se o Senhor não tivesse nada a ver com as nossas decisões diárias. Porém, o termo livre-arbítrio sob a óptica da teologia e da filosofia é muito técnico e restrito. Nesta lição, o que nos interessa é o livre-arbítrio relacionado à Soberania de Deus na salvação e como deve ser entendido à luz das Escrituras.
Podemos dizer que livre-arbítrio é a capacidade que o homem tem de fazer escolhas que podem ser contrárias ou não à sua natureza. O termo arbítrio diz respeito a julgar, isto é, o homem “teria” a capacidade de avaliar se vai tomar uma decisão contrária à sua natureza ou não, por isso o termo “livre”. Usei o verbo no futuro do pretérito (teria), porque, na realidade, segundo a Escritura, nenhum homem tem livre-arbítrio. O único homem que teve livre-arbítrio foi Adão.
É importante entender que o homem foi criado segundo a imagem e semelhança de Deus, ou seja, em retidão e perfeita santidade. “Eis o que tão somente achei: que Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias” (Ec 7.29; cf. Gn 1.27; 2.7; 3.6; Sl 8.5; Mt 10.28; Rm 2.14-15; Cl 3.10). Quando o homem pecou, perdeu a condição de “arbitrar” sobre sua vontade, perdeu a possibilidade de escolher entre estas duas alternativas: praticar a vontade de Deus ou pecar.
Para entender isso o esquema criado por Agostinho de Hipona sobre a condição do homem antes e depois do pecado é de grande ajuda.
Antes da Queda o homem era:
posse non peccare (capaz de não pecar)
posse peccare (capaz de pecar)
Depois da Queda o homem é:
non posse non peccare (incapaz de não pecar)
Antes de pecar, o homem poderia obedecer à vontade de Deus e lhe ser agradável por meio da sua própria justiça e santidade. Após a Queda, ele tornou-se incapaz de não pecar. A relação entre a liberdade, responsabilidade e soberania será explorada mais à frente, nas lições desta revista. No momento, interessa-nos conhecer a devassidão causada pelo pecado para podermos compreender que, após a Queda, o homem conseguiu o que chamamos de “livre-agência”.
II. O estrago do pecado
A condição espiritual do homem depois do pecado é conhecida como depravação total ou radical.
Primeiro, sobre essa condição, é necessário saber que o pecado de Adão atingiu todos os homens em todas as épocas, incluindo até mesmo a criação inanimada (Rm 8.19-21). “… pois todos pecaram e carecem da glória de Deus”(Rm 3.23), e “… assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5.12).
Adão era o representante da criação diante de Deus; quando ele pecou, toda a criação caiu com ele. É importante entender a extensão do pecado para reconhecer que ninguém está alheio aos seus efeitos, nem mesmo as crianças. Diz o rei Davi: “Eu nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe” (Sl 51.5; cf. Is 48.8). Após a Queda, todos os seres humanos nascem na condição de pecadores.
Segundo, o pecado nos tornou inimigos de Deus. Em sua carta aos Efésios, o apóstolo Paulo diz “… andamos outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos, por natureza, filhos da ira, como também os demais” (Ef 2.3).
Tiago registra que “Aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus” (Tg 4.4b; cf. Cl 1.21). A ruptura que o pecado causou na comunhão de Deus com o homem tornou esse último não apenas desobediente, mas também um potencial rival da vontade divina.
Terceiro, o pecado matou o homem, afastando-o de Deus. Em Efésios, lemos: “Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados” (Ef 2.1; cf. Gn 2.17). O profeta Isaías disse: “… as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.2).
A morte espiritual diz respeito à impossibilidade que o homem tem de se voltar para Deus. Há um abismo tão grande entre o pecador e o Senhor que é impossível para o homem aproximar-se dele.
Em último lugar, o pecado afetou todas as faculdades do ser humano. Isso significa que não há um pensamento, atitude e palavra que não estejam manchados pelo pecado; e isso é assustador. As Escrituras relatam que “Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração” (Gn 6.5). Esse retrato não se refere somente à geração do dilúvio. O que o Senhor revela em sua Palavra sobre nossa condição é humilhante:
“… como está escrito: Não há um justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há um sequer. A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua, urdem engano, veneno de víbora está nos seus lábios, a boca, eles a têm cheia de maldição e de amargura; são os seus pés velozes para derramar sangue, nos seus caminhos, há destruição e miséria; desconheceram o caminho da paz. Não há temor de Deus diante dos seus olhos” (Rm 3.10-18).
Alguns apontamentos são interessantes. Perceba que o apóstolo Paulo faz várias citações do Antigo Testamento, ou seja, essa verdade está presente em toda Escritura. Note que todos os homens são colocados sob o mesmo patamar, e por duas vezes ele afirma “não há um sequer”. Agora, veja a lista de pecados que ele coloca como nossos, pois todos nós estamos sujeitos a praticá-los.
Isso significa ser depravado de forma total, ou radical. Quando observamos a nossa vida, podemos até pensar que não somos tão maus assim. Mas, de fato, o que a Palavra ensina é que a raiz – por isso usamos o termo radicalmente – está contaminada e compromete tudo o que dela procede. Essa raiz é o coração. O pecado habita no coração do homem e, como nosso Senhor Jesus ensinou, “do coração procedem maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias” (Mt 15.19). Após a Queda, “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?” (Jr 17.9).
Todas as decisões que o ser humano toma estão permeadas de pecado. O homem não consegue agir contra as rédeas que são o legado de sua carne contaminada. Por isso, dizemos que o homem perdeu o livre-arbítrio, isto é, ele não tem mais a capacidade de arbitrar entre o bem e o mal; mas a condição da sua vontade é de livre-agência.
III. Do livre-arbítrio para a livre-agência
A livre-agência pode ser definida como a capacidade de o homem fazer escolhas somente de acordo com a sua natureza. Se Adão, que foi criado santo e reto, pôde fazer uma escolha contrária à sua natureza boa, depois do pecado, todos os homens agem somente – por isso livre-agência – de acordo com a sua natureza, agora decaída. Podemos definir a livre-agência entre pré-conversão e pós-conversão. Não é o nosso objetivo, nesta lição, discutir a respeito da salvação do homem – isso será feito em lições futuras, mas pretendemos estudar como se dá a livre-agência nesses dois modelos possíveis.
A. Pré-conversão
Antes de crer em Cristo Jesus, como vimos brevemente, o homem está morto em seus delitos e pecados e vive em desobediência a Deus (Ef 2.1-3). “Pode, acaso, o etíope mudar a sua pele ou o leopardo, as suas manchas? Então, poderíeis fazer o bem, estando acostumados a fazer o mal” (Jr 13.23). Veja a constatação do profeta Jeremias. É importante lembrar que ele fala para um povo e em uma época em que não existiam as cirurgias estéticas tão comuns atualmente. É como se ele estivesse dizendo que, se fosse possível alguém mudar a cor da pele, só porque quer, então, alguém acostumado a fazer o mal conseguiria fazer o bem. A situação é de escravidão, servidão: “… todo o que comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8.34).
A vontade do homem está condicionada e servilmente sujeita ao pecado que habita nele. Não há nada que o homem caído possa fazer para, sozinho, desvencilhar-se dessa situação, pois ele está morto em seus delitos e pecados (Ef 2.1). Assim, sua vontade não é de maneira alguma livre; ele não pode arbitrar entre o bem e o mal, e segundo a Palavra todo homem deseja somente pecar. Se Deus não usar de sua graça e misericórdia, o homem continuará fazendo somente a vontade da carne.
B. Pós-conversão
A livre-agência do cristão não é a mesma daquele que ainda não conheceu a Cristo e foi salvo por ele. Quando Deus nos salva, ele retira de nós o coração de pedra – lembre-se, a raiz do problema – e coloca em nós um novo coração, disposto a servi-lo, obedecê-lo e buscá-lo (Ez 11.19; 36.26; Sl 51.10). Ao mesmo tempo, ainda estamos presos a nosso estado corruptível; mas, em sua nova vida, o cristão tem condições de lutar contra o pecado e, em Cristo, ser vitorioso sobre os seus inimigos: a carne, o mundo e o diabo (Jo 16.8-11,33; Rm 6.13,18; 8.10, 37; 1Jo 2.13-14; 5.4-5).
Cristo Jesus foi morto “… carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos para os pecados, vivamos para a justiça; por suas chagas, fostes sarados” (1Pe 2.24).
Contudo, não dizemos que o cristão volta a ter livre-arbítrio de Adão, porque ainda reside nele o pecado, e seu coração precisa ser constantemente fortalecido e preenchido pela Palavra e pelo Espírito para que ele obedeça a Deus de modo que o agrade (Gl 5.16; Ef 5.15-20; 2Tm 3.16-17; Hb 4.12).
Adão e Eva, antes de pecarem, não precisavam se esforçar para obedecer a Deus, pois tinham sido criados santos e justos. Quanto ao crente, nascido sob o pecado, mas regenerado pelo Espírito de Deus, ele precisa se esforçar para cumprir a vontade do Senhor (Êx 19.5; Dt 6.17; At 24.16; Ef 4.3; Hb 4.11; 12.15; Jd 3). Assim sendo, mesmo tendo a capacidade de vencer sua natureza maligna, o crente tem também uma natureza transformada, e age de acordo com ela (Gl 5.17). Seguindo o ensino bíblico, nos novos céus e nova terra, não mais pecaremos (non posse peccare), assim nossa natureza estará cativa somente à vontade de Deus.
Conclusão
No Éden, o primeiro casal, Adão e Eva, foi criado santo e justo, mas desobedeceu e caiu em pecado. A partir daí, todos os homens nascem sob as correntes do pecado, tendo sua vontade sempre cativa pelo mal e por este são influenciados; nessa condição, não conseguem por si mesmos voltar-se para Deus. No entanto, quando, por meio da ação sobrenatural do Espírito, Deus transforma um pecador e o resgata, este passa a ter o privilégio de obedecer e fazer a vontade do Criador. A nossa esperança, que se encontra fortalecida pela promessa de Deus, é que um dia seremos totalmente transformados e nunca mais pecaremos.
Você já tinha considerado que depois de Adão o livre-arbítrio deixou de existir? Você concorda que as pessoas que não conhecem a Cristo agem dominadas pelo pecado, como ensinam as Escrituras? Você tem se esforçado para obedecer a Deus em todos os seus caminhos, numa resposta à ação transformadora de Deus em você?
Apóstolo. Capelão/Juiz. Mestre e Doutor em Ciências da Religião Dr. Edson Cavalcante
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