JULGAR OS OUTROS É FÁCIL, SE COLOQUE
NESSE MOMENTO NO LUGAR DO APOSTOLO PAULO...
O livro de Atos dos
Apóstolos, o quinto do Novo Testamento da Bíblia e considerado também uma
continuação do Evangelho segundo Lucas, contém preciosas informações não apenas
de interesse teológico, despertando a atenção de historiadores e até mesmo de
estudiosos do Direito. A empolgante narrativa de 28 capítulos começa na região
de Jerusalém, com uma breve conversa entre Jesus e os apóstolos, alguns
instantes antes de sua ascensão aos céus, e termina na cidade de Roma, com o
apóstolo Paulo cumprindo a sua prisão domiciliar numa casa por ele alugada
enquanto aguardava em custódia o julgamento de seu caso pelo imperador romano.
O apóstolo Paulo, sem
dúvida, deu uma grande contribuição à expansão da fé cristã no século I da era
comum. Depois de ter sido um implacável perseguidor da Igreja, Paulo
converteu-se ao cristianismo e começou a pregar o Evangelho por diversas
regiões da parte oriental do Mar Mediterrâneo, empreendendo três viagens
missionárias que incluíram territórios atuais de Síria, Chipre, Turquia e
Grécia.
Contudo, o
ex-perseguidor da Igreja tornou-se perseguido. Em muitas das cidades nas quais
Paulo exerceu o seu ministério apostólico, ele veio a sofrer uma forte oposição
tanto de judeus quanto de pagãos, vindo a ser injustamente preso e violentado
sem que houvesse qualquer condenação criminal contra ele. Na cidade macedônica
de Filipos, Paulo chegou a demonstrar um razoável conhecimento a respeito dos
direitos que tinha como cidadão romano quando as autoridades locais mandaram
libertá-lo de sua prisão ilegal.
É importante lembrar
que, nos tempos de Paulo, nem todos eram iguais perante as leis de Roma. Uns
eram escravos e eram tratados como mercadorias. Outros eram meros estrangeiros
para os romanos, embora vivessem dentro da circunscrição do império pagando os
seus pesados impostos. E existiam ainda aqueles que, por motivo de nascimento,
ou de aquisição mediante algum pagamento ao governo, tornavam-se cidadãos
romanos e que, portanto, passavam a ter alguns direitos naquela sociedade. Pois
Roma era a cidade que governava o mundo no século I e, deste modo, quem tivesse
a cidadania romana teria direitos protegidos pelas leis, entre os quais o de
receber um julgamento justo, caso fosse feita alguma acusação.
Sendo assim, mesmo
naquela época, uma autoridade não poderia jamais prender uma pessoa que fosse
cidadão romano sem que houvesse um justo motivo. E muito menos castigar com
açoites, dando um tratamento desumano, conforme tinha ocorrido com Paulo e
Silas na cidade de Filipos. Logo, Paulo teve que ser libertado e ainda recebeu
desculpas das autoridades locais pelo ocorrido.
Contudo, após concluir
a sua terceira viagem missionária e retornar mais uma vez para Jerusalém, Paulo
veio a enfrentar um processo criminal, o que desperta até hoje o interesse de
muitos pesquisadores.
Nesta ocasião, o
ministério apostólico de Paulo já tinha muitos colaboradores. Lucas diz que,
desta vez, quando o apóstolo retornou a Jerusalém, acompanharam-no vários
discípulos oriundos de lugares anteriormente evangelizados na primeira e na
segunda missão evangelística.
Ao chegar na cidade,
Paulo é orientado por Tiago a submeter-se aos costumes dos judeus para evitar
conflitos, pois alguns de seus compatriotas tinham espalhado boatos de que o
apóstolo estaria negando a Moisés e ensinando os judeus a não circuncidarem
mais os seus filhos.
Entretanto, a atitude
praticada por Paulo, no sentido de externar aos judeus a observância das
tradições de seu povo, não foi capaz de evitar a sua prisão. E, justamente
quando ele se encontrava no templo judaico, o apóstolo veio a ser
repentinamente acusado por alguns de seus compatriotas por ter
"profanado" aquele local introduzindo gentios ali, pelo que passaram
a espancá-lo e toda cidade ficou tumultuada, de modo que o comandante as forças
romanas em Jerusalém precisou intervir para fazer cessar a confusão. Paulo,
então, escapou do linchamento, mas ficou detido.
Pouco depois de sua
prisão, Cláudio Lísias, o comandante da fortaleza de Jerusalém, tomou a
providência de enviar Paulo para o governador da província da Judeia, na cidade
de Cesareia, a fim de zelar pela segurança do apóstolo por ser ele um cidadão
romano, sendo que Lucas, em sua narrativa, chega a transcrever o teor da
correspondência que comunicava a sua transferência:
"Cláudio Lísias ao
excelentíssimo governador Félix, saúde. Este homem foi preso pelos judeus e
estava prestes a ser morto por eles, quando eu, sobrevindo com a guarda, o
livrei, por saber que ele era romano. Querendo certificar-me do motivo por que
o acusavam, fi-lo descer ao Sinédrio deles; verifiquei ser ele acusado de
coisas referentes à lei que os rege, nada, porém, que justificasse morte ou
mesmo prisão. Sendo eu informado de que ia haver uma cilada contra o homem,
tratei de enviá-lo a ti, sem demora, intimando também os acusadores a irem
dizer, na tua presença, o que há contra ele." (ver Atos 23:26-30)
Nos primeiros momentos,
a sua prisão havia ocorrido por causa de um tumulto na cidade de Jerusalém.
Porém, ao chegar em Cesareia, Paulo passou a ser efetivamente processado pelo
sumo sacerdote judeu que pretendia matá-lo como havia sido feito anteriormente
com Jesus e com Estevão.
Nesta época, a sede do
governo romano na região da Judeia não estava mais situado em Jerusalém e sim
em Cesareia. Contudo, o Sinédrio ainda se reunia em Jerusalém onde também havia
um comando das forças romanas e, ao que parece, seria uma unidade subordinada
ao governador daquela província romana.
Para o comandante das forças
romanas em Jerusalém seria mais tranquilo livrar-se de Paulo, mandando-o para
junto do governador numa outra cidade, do que suportar toda aquela pressão dos
judeus querendo assassinar um prisioneiro que portava a cobiçada cidadania
romana.
Mais uma vez, tal como
no incidente de Filipos, Paulo havia prevalecido de sua cidadania romana, a
qual iria lhe assegurar o direito a um julgamento justo, conforme as leis da
época. Pois se Paulo fosse apenas um judeu, provavelmente teria sofrido
injustos açoites e teria sido entregue nas mãos dos seus compatriotas para ser
julgado e condenado pelo Sinédrio por se tratar de uma questão meramente
religiosa. E, caso viesse a ser linchado publicamente como foi Estevão, as
autoridades romanas nem teriam com o que se preocupar, se não fosse ele um
cidadão romano.
Ao ser conduzido
preventivamente preso para a cidade de Cesareia, Paulo ficou distante do foco
de tensão, de modo que o seu julgamento ali receberia menos pressões por parte
dos judeus do que se fosse realizada uma audiência em Jerusalém.
Interessante perceber
que todos esses acontecimentos no final colaboraram que Paulo fosse mais tarde
dar prosseguimento ao seu apostolado na cidade de Roma, conforme se verá.
Porém, Paulo precisou permanecer por pelo menos dois anos preso em custódia na
cidade de Cesareia sob os cuidados do governador da Judeia devido à queixa
apresentada pelos judeus, cinco dias depois de ter sido transferido de
Jerusalém. Isto porque uma vez sendo formalizada a acusação, foi instaurado um
verdadeiro processo criminal dentro dos moldes a época, segundo as leis
romanas.
Embora na época não
existisse ainda a separação entre os Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário, como existe nos dias de hoje, já era proibido uma autoridade
condenar um cidadão romano a cumprir qualquer tipo de pena arbitrariamente.
Pois, para que alguém fosse morto ou condenado a trabalhos forçados, seria
preciso passar por um processo criminal com direito à defesa e à produção de
provas, co que se encontra registrado por Lucas em Atos:
"A eles respondi
que não é costume dos romanos condenar quem quer que seja, sem que o acusado
tenha presentes os seus acusadores e possa defender-se da acusação" (Atos
25:16).
Tal como ocorre nos
dias de hoje numa CPI do Congresso Nacional, o então governador da Judeia,
Marco Antônio Félix, procurou tirar vantagens políticas e pessoais a respeito
do caso Paulo.
Lucas conta que Félix
ficou protelando o andamento do processo de Paulo e, com frequência, mandava
chamá-lo alimentando a vã expectativa de arrumar alguma propina (Atos 24:26).
Agindo com ousadia,
Paulo certa vez chegou a pregar sobre Jesus para Félix e sua jovem esposa
Drusila, filha do rei Herodes Agripa. Porém, o governador apenas sentiu-se
amedrontado e se recusou a abraçar a fé, tendo mantido contatos com Paulo pelo
período de dois anos, deixando-o encarcerado em custódia a fim de agradar os
judeus e, talvez, aumentar sua influência política sobre a região.
Segundo a História,
Félix tinha um casamento considerado adúltero com Drusila, sob o ponto de vista
judaico-cristão, pois ela havia sido casada com Azis de Emesa e, portanto,
jamais poderia contrair novas núpcias enquanto vivesse o seu marido. Porém,
como ela era filha de Herodes Agripa, a afinidade com aquela influente família
da Palestina poderia dar mais poderes a Félix na região.
Ao fim de dois anos
depois, Félix foi substituído por Pórcio Festo em seu cargo. O novo governador,
na certa desejando conquistar o apoio político dos judeus na região, planejou
então realizar logo o julgamento de Paulo em Jerusalém e para isto convocou uma
audiência em Cesareia para decidir sobre a questão.
Sabiamente, Paulo
utilizou-se de um recurso previsto nas leis romanas – o apelo para César. Isto
porque, naquela época, as leis garantiam a um cidadão romano o direito de
requerer uma audiência com o imperador, caso entendesse estar sofrendo
injustiças no seu processo.
Ao fazer uso desse
instrumento jurídico (o apelo para César), Paulo estaria ganhando a sua
passagem de ida para Roma, o que, em breve, iria lhe acontecer. Porém, antes
disto, Paulo ainda iria prestou um depoimento perante o rei Agripa e à sua irmã
Berenice, os quais vieram visitar Festo em Cesareia naqueles dias.
Assim, aproveitando a
presença do rei Agripa na cidade, Festo resolve lhe expor o caso de Paulo
pedindo-lhe uma orientação, pelo que o governador convocou uma nova audiência a
fim de ser colhido mais um depoimento pessoal do apóstolo.
Embora a jurisdição de
Festo tivesse sido esvaziada com o apelo de Paulo, o governador ainda pretendia
obter o posicionamento do rei Agripa a fim de poder justificar qual seria o
motivo das acusações que pesavam contra o apóstolo e que teriam dado ensejo à
sua injusta prisão e à manutenção daquela absurda custódia.
Festo acreditava que
Agripa, por ser judeu, poderia ajudá-lo na compreensão daquele difícil caso
para o qual ele não conseguia encontrar uma justificativa já que Paulo não
cometera nenhum crime que contrariasse as leis romanas e tão pouco teria
profanado a religião judaica.
Pela lógica do sistema
romano, Paulo jamais deveria ter ficado preso! Desde o momento em que foi
agredido, em Jerusalém, cabia às autoridades romanas tê-lo protegido dos judeus
que tentavam matá-lo, sem restringir-lhe a liberdade. Contudo, essas
autoridades desejavam satisfazer às multidões conquistando o apoio político dos
líderes judeus e, como não encontraram permissão das próprias leis para
permitirem o linchamento de um cidadão romano em praça pública, ficaram todos
embaraçados para decidir.
Ora, se dois anos antes
Félix recebeu Paulo em Cesareia mantendo-o em custódia por todo este período,
longe de Jerusalém, logo precisaria haver um justo motivo que justificasse esta
providência excepcional. E, uma vez que outra autoridade assumiu o caso, cabia
ao novo governador da Judeia (Festo) julgar Paulo, uma vez que ele havia
resolvido levar o caso para Jerusalém a fim de dar andamento ao processo e lá
proferir a sentença. Só que, com o apelo de Paulo ao imperador, Festo precisava
escrever algo a respeito de seu prisioneiro e, como não tinha o que dizer para
justificar aquela prisão, aproveitou a presença de Agripa em Cesareia para lhe
apresentar o caso confiando na possibilidade do rei identificar alguma conduta
desabonadora capaz de justificar a restrição de liberdade praticada.
Ousadamente Paulo
aproveita aquela nova audiência perante Festo para pregar o Evangelho perante o
próprio governador, Agripa, sua irmã Berenice e várias outras pessoas
presentes, demonstrando pouca preocupação com o que poderia ser decidido a seu
respeito.
Interessante que Paulo
poderia muito bem ter reclamado das injustiças cometidas em seu processo, mas
preferiu pregar sobre Jesus para esse público de autoridades corruptas e
injustas, fazendo com que toda aquela situação se tornasse mais uma
oportunidade para falar a respeito do Evangelho.
Em Atos 26:1-23, Lucas
reproduz o discurso de Paulo até ser interrompido pelo governador no versículo
24, sendo que a defesa de Paulo perante o rei Agripa representa um emocionante
testemunho sobre a sua vida. Paulo não escondeu o seu passado perverso como
perseguidor da Igreja e de, ex-seguidor da seita dos fariseus. Mencionou sua conversão
quando ia prender cristãos na cidade de Damasco. Falou sobre a missão
evangelística que recebeu e quanto ao trabalho eclesiástico que desempenhou
durante seus últimos anos.
Além de Paulo ter
informado ao rei sobre o seu passado e sua vocação apostólica, Paulo também
contextualizou o seu julgamento dentro de uma visão religiosa, "por causa
da esperança da promessa que por Deus foi feita" (At 26:6-7), explicando
que o motivo pelo qual chegou a ser preso foi tendo sido o fato de ele anunciar
o arrependimento e a conversão (Atos 26:20-21).
Curioso que mesmo sendo
interrompido pelo governador (Atos 26:24), Paulo conseguiu completar a sua
mensagem abordando os principais aspectos da evangelização cristã: o sacrifício
de Jesus, a necessidade de arrependimento e de conversão a Deus, bem como a
ressurreição dos mortos. Ao prestar um depoimento sobre a sua vida, Paulo foi
capaz de reunir na sua mensagem todos os pontos essenciais de uma pregação,
agindo com ousadia e liberdade diante de reis e das autoridades da época, ainda
que estivesse aparentemente algemado.
Segundo a narrativa de
Lucas em Atos, verifica-se que o governador Festo resolveu interromper a
pregação de Paulo chamando-o de louco. E, quanto ao rei Agripa, mesmo
conhecendo as Escrituras e o que diziam os profetas a respeito de Cristo,
preferiu afirmar que "por pouco" teria se tornado um cristão.
De acordo com a
História, havia rumores na época de que Agripa vivia uma relação incestuosa com
sua irmã Berenice, a qual foi mais tarde amante do imperador Tito. O seu apego
ao poder político e a um estilo de vida fora dos padrões judaico-cristãos podem
ter se tornado um impedimento para que se convertesse ao cristianismo. Contudo,
ao se retirarem do local da audiência e se reunindo separadamente, Festo e Agripa
concordaram entre si que Paulo nada havia praticado que merecesse a morte ou a
prisão (Atos 26:31).
Dando uma solução para
o caso de Paulo, Agripa resolve proferir o seu parecer pela absolvição do
apóstolo, justificando a permanência da sua custódia apenas pelo fato do
recurso interposto à César (Atos 26:32), como se o uso deste instrumento
processual de defesa tivesse sido desnecessário.
Assim, reconhecendo a
inocência de Paulo, as autoridades romanas da região da Judeia estavam se
justificando formalmente diante do imperador, no sentido de que Paulo era
realmente inocente e só estava sendo enviado para Roma porque recorreu para
César ao invés de ter aceitado o julgamento ali na Palestina.
Deste modo, Paulo
seguiu para Roma com um parecer em favor de sua inocência, o que só contribuiu
para a sua absolvição, o que de fato, veio a ocorrer, segundo sabemos pela
História da Igreja, visto que a decisão do imperador não consta registrada na
Bíblia.
Importante esclarecer
que a decapitação de Paulo, ocorrida anos depois, em nada tinha a ver com os
acontecimentos relacionados à sua prisão descrita em Atos dos Apóstolos.
Ao deixar Cesareia em
um navio, Paulo ainda permaneceu em custódia e continuou neste estado ainda por
mais dois anos em Roma (Atos 28:30).
Outra observação
relevante é que que até então não tinha se levantado nenhuma perseguição
declarada do Império Romano contra a Igreja, pois os fatos descritos no Livro
de Atos dos Apóstolos diziam respeito à intolerância de integrantes do judaísmo
e a incidentes ocorridos em algumas cidades com os gentios como em Filipos
(Atos 16:16-24) e também em Éfeso (Atos 19:23-41).
Para a época em que foi
escrito, Atos dos Apóstolos, ao mesmo tempo, alcançou o objetivo de manter
registrada a história inicial da Igreja e, principalmente, encorajar os demais
cristãos que tão logo seriam massacrados por Nero, o qual, dentro de um
contexto diferente das passagens narradas por Lucas, mataria Paulo e também a
outros discípulos contemporâneos a Jesus.
Não demorou muito,
Jerusalém veio a ser destruída pelas tropas de Tito durante o governo de seu
pai, o general Verpasiano, sucessor de Nero. O templo judaico, tal como fora
profetizado por Jesus no Evangelho de Mateus, foi verdadeiramente devastado
pelas tropas romanas, restando apenas pedras e ruínas.
Por tais motivos,
pode-se dizer que a maioria dos livros do Novo Testamento, entre os quais Atos
e os três primeiros Evangelhos, foram escritos justamente antes da grande
perseguição que se levantou por Nero e da destruição de Jerusalém. Não só para
que houvesse memória histórica dos acontecimentos sobre a formação da Igreja
como também para encorajamento dos cristãos diante das perseguições futuras. E,
sem dúvida, Lucas encontrou a melhor maneira para encerrar o seu segundo livro,
mostrando Paulo cumprindo dando continuidade ao seu ministério apostólico na
cidade de Roma (Atos 28:30-31)...
Bispo. Capelão/ Juiz.
Mestre e Doutor em Ciência da Religião Dr. Edson Cavalcante
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