A IRA DE DEUS
O jardim do Éden nos faz pensar bastante a respeito de discórdias. Mesmo só existindo duas pessoas sobre a face da terra, elas conseguiram brigar entre si. É claro que falamos nos resultados da Queda, ou seja, nos efeitos do pecado sobre o relacionamento humano.
Há alguns que defendem que a igreja deveria estar completamente isenta de problemas de relacionamento, já que é composta por convertidos. Estes, no entanto, se esquecem que, embora sejam filhos de Deus, os membros de qualquer igreja ainda lutam contra o pecado em seus corações. Sendo assim, mesmo tendo como objetivo a vida comunitária em santidade, não estão isentos de dificuldades interpessoais.
A lição de hoje nos mostrará como esse assunto é antigo na igreja e também como podemos lidar com ele.
I. Trabalhadoras dando trabalho
Paulo tomou ciência de que a igreja que nascera provavelmente na casa de Lídia (At 16.15) passava por problemas por causa do relacionamento entre outras duas mulheres: Evódia (que quer dizer “boa viagem”) e Síntique (“afortunada”). Não sabemos muitos detalhes sobre elas. Sabemos somente que:
Eram obreiras esforçadas pela causa do evangelho. Elas devem ter sido importantes para o ministério de Paulo naquela cidade. Daí a preocupação dele para que cessassem as contendas, pois, nessa situação de conflito, em vez de ajudarem, estavam atrapalhando e dando trabalho a outros.
Eram crentes de fato. Paulo as incluiu no grupo de cooperadores que têm seus nomes escritos no Livro da Vida (v.3). A tentação que temos ao lidar com o desentendimento entre pessoas da igreja é tentar polarizar, ou seja, tentar definir quem está certo e quem está errado, quem é de Deus e quem é o inimigo. A igreja de Filipos nos ensina que até mesmo duas obreiras cristãs e convertidas de fato podem entrar em discórdia.
II. Em busca da paz
Em vez de pura e simplesmente proferir palavras de condenação, Paulo emprega uma linguagem amorosa (“rogo”) e pessoal. Ele repete o pedido a cada uma das duas: “Rogo a Evódia e rogo a Síntique” (v.2).
A atitude de Paulo é sábia. Ele institui alguém daquela igreja como uma espécie de apaziguador: “A ti, fiel companheiro de jugo, também peço que as auxilies” (v.3). Alguns sugerem que a expressão “companheiro de jugo”, na verdade, era a tradução do nome próprio Syzygos.[1] Outros discordam e pensam em outros nomes conhecidos do Novo Testamento, como Epafrodito, Lucas ou Silas.[2] Mais importante do que definir o nome desse “fiel companheiro” é ter em mente a estratégia de Paulo para acabar com aquela briga entre as duas mulheres. O apóstolo responsabilizou um crente local para ser o conselheiro e apaziguador a fim de estabelecer a concórdia.
O objetivo da igreja é a promoção da paz. Em primeiro lugar, paz entre o ser humano e Deus, em segundo lugar, paz entre os seres humanos entre si. Por isso, ao terminar essa sessão, Paulo aponta para esse alvo: “E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus” (Fp 4.7).
Já sabemos que havia uma notória contenda naquela igreja e que Paulo, a fim de restabelecer a paz, nomeia um irmão para ajudar no caso. O que ele deveria dizer? Como consolar e exortar o coração daquelas duas mulheres? Esse conteúdo será detalhado a seguir.
III. Alegrar-se no Senhor
Ao comentar esse texto, Russel Shedd faz a seguinte pergunta: “Quando a injustiça nos atinge, os insultos falsos nos degradam, mudam o contentamento em queixume e insatisfação. Quando a situação nos decepciona até o ponto de querer agredir alguém, como se alegrar no Senhor?”.[3] Como seres humanos pecadores, nossa tentação é responder violência com violência e ódio com ódio. “Permitir surgir em nós aquele espírito de amargura mortífera nos destrói e facilmente se espalha pela igreja.”[4]
A ordem para que os crentes de Filipos se alegrassem transcendia o problema entre Evódia e Síntique. É importante lembrarmos que um dos motivos que leva Paulo a escrever essa epístola é o fato de os filipenses terem se perturbado por sua prisão em Roma. Paulo, então, lembra-lhes que o propósito de sua vida é pregar o evangelho, custe o que custar. Se esse preço fosse a morte, seria então um grande lucro para ele. Se havia alguém que poderia ensinar sobre alegria era o próprio Paulo, pois ele, como testemunha, aprendeu “a viver contente em toda e qualquer situação” (Fp 4.11), até mesmo quando estava preso. Toda a carta é permeada de motivos que devem conduzir o crente a uma perene alegria[5]:
A Alegria de Paulo na Carta aos Filipenses | |
1.19, 20 | Porque ele era um indivíduo salvo, cujo propósito era magnificar a Cristo em sua personalidade inteira. |
2.5-11; 3.20, 21; 4.5 | Porque se gloria cruz, coroa e segunda vinda desse Salvador. |
4.11-13,19, 20 | Porque Deus era poderoso e condescendente para suprir todas as suas necessidades. |
1.6;2.17, 18 | Porque outros também estavam sendo salvos. |
1.5; 2.19-30; 4.1, 10 | Porque o próprio apóstolo estava sendo usado por Deus para esse propósito glorioso; porque tinha muitos amigos e auxiliares na causa do evangelho, e porque, juntos, formavam uma gloriosa comunhão no Senhor. |
1.12-18; cf. Rm 8.28 | Porque Deus estava conduzindo todas as coisas, mesmo as cadeias, de modo que tudo cooperava juntamente para o bem. |
1.21, 23 | Porque até mesmo a morte é lucro quando a vida é Cristo. |
4.6 | Porque em todo tempo ele tem livre acesso ao trono da graça. |
Será que Evódia e Síntique (ou eu e você) poderiam comparar seus sofrimentos pessoais aos de Paulo? Se ele podia enxergar tantos motivos de alegria na vida cristã, com certeza elas (e todos nós) deveriam deixar de lado as migalhas e começar a olhar para o que, de fato, tem valor.
IV. Moderação
A palavra “moderação” (v.5) tem um significado bem abrangente na língua original na qual a Bíblia foi escrita. Enquanto, em português, o termo pode significar algo como “equilíbrio”, o significado dessa palavra tem uma dupla conotação:
Desapego do interesse pessoal. O que leva duas pessoas a terem uma discórdia ao ponto de serem repreendidas? Com certeza elas precisavam se lembrar que não se pode ter “em vista o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos outros” (Fp 2.4).
Interesse pelo bem alheio. Essa moderação da qual fala o texto também dá a idéia de “generosidade”. Esses dois pontos são faces de uma mesma moeda: por um lado, não se deve colocar o direito próprio em primeiro lugar; por outro, deve-se pensar no direito alheio acima de tudo.
Como acontece nos embates com os quais, infelizmente, temos que lidar na igreja, alguns argumentam que “não têm sangue de barata para agüentar desaforos calados”. Essa frase não poderia ser jamais proferida por um cristão, pois ele deveria confiar que “Perto está o Senhor” (v.5). Essa afirmação tanto pode indicar que Deus sabe intimamente dos nossos sofrimentos diários (Sl 145.18) como também pode apontar para a proximidade da volta de Jesus. Nosso dever pessoal é amar até nosso inimigo (Lc 6.35), confiando que não a nossa ira, mas a de Deus é que vai ser sentida no final (Rm 12.19). Se devemos agir assim em relação aos nossos inimigos, muito mais em relação aos nossos irmãos! Devemos, portanto, sofrer em santidade, sem pecar ou baixar o padrão da ética cristã, pois, se alguém tem que ser castigado, a volta iminente de Cristo se encarregará disso.
Quando se entrega a vingança para quem tem essa tarefa por direito (Rm 12.19-21), nossa moderação funciona como um excelente testemunho, ou seja, “conhecida de todos os homens”, como afere o texto básico.
V. Não ser tomado pela ansiedade
Paulo interpretou o problema entre Evódia e Síntique como sendo uma discórdia. Não deve ter sido uma simples diferença de opinião, pois se chegou ao ponto de merecer uma menção especial em sua epístola é porque o fato já era notório na comunidade cristã.
Podemos pensar nessa discórdia como sendo duas crentes que decidiram resolver suas diferenças pessoais como duas incrédulas. Não há nada mais vergonhoso para o cristão do que voltar a agir como ímpio. Por que o crente pode acabar explodindo em ofensas contra seu irmão na fé? Porque algumas vezes permitimos que pequenos problemas de relacionamento mal resolvidos cresçam e façam um grande estrago. A palavra “ansiosos” pode ser também traduzida por “inquietos”, ou seja, Paulo está condenando aquela prática de ficar meditando no mal recebido e concebendo um mal maior ainda. Se você foi ignorado na porta da igreja por aquele irmão de quem você julgava ser íntimo, em vez de resolver o assunto, você prefere reviver a cena dezenas de vezes em sua mente e se auto-alimentar de maldade. Como resolver isso?
Rotina de Oração – Somente quem tem intimidade com Deus poderá resolver definitivamente problemas de relacionamento. A intimidade dos crentes com Deus se faz através da oração.
Orando por tudo – Não há segredos do crente para com seu Deus e Pai. Quer seja para adorá-lo, pedir algo, confessar pecado ou interceder por alguém, a oração deve ser praticada como base em toda a nossa vida. Evódia e Síntique com certeza não brigariam se estivessem orando uma pela outra!
Orando com coração grato – Paulo escreveu diversas vezes sobre a necessidade da gratidão a Deus (1Ts 5.18; Ef 5.20). Deus é sábio de tal maneira que ninguém jamais poderia ser seu conselheiro (Rm 11.33-35). Então, até mesmo quando tenho uma opinião diferente da do meu irmão, nisso também o Senhor tem um propósito na minha vida.
Conclusão
Não é incomum dois crentes “se estranharem” de vez em quando. O que não pode ser comum é essa situação não ser resolvida e, com isso, toda a igreja sofrer por causa do orgulho de dois irmãos que, à semelhança de Evódia e Síntique, ajudavam bastante, mas, agora, só atrapalham.
Mesmo que seja necessária a interferência de uma terceira pessoa (apaziguador), não deixe de procurar a solução, lembrando-se sempre da alegria e da moderação em todas as circunstâncias e objetivando a “paz que excede a todo entendimento”.
Apóstolo. Capelão/Juiz. Mestre e Doutor em Ciências da Religião Dr. Edson Cavalcante
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