PODE O
CRISTÃO USAR TATUAGEM, EM APOCALIPSE DIZ QUE JESUS TINHA UMA TATUAGEM NA COXA?
Há muitas pessoas que interpretam o texto de Apocalipse
19.16, "em no seu manto e na sua coxa um nome inscrito: REI DOS REIS E
SENHOR DOS SENHORES" como se o texto bíblico descrevesse um "Jesus
tatuado". Já ouvi, inclusive, alguém dizer certa vez: "Galera, Jesus
era um dos nossos! Ele também tinha uma 'tatoo' na sua coxa!". Tal
equívoco interpretativo se deve a três causas principais:
a) ao desconhecimento do texto grego original do Novo
Testamento, bem como, de suas regras gramaticais;
b) às traduções existentes em português que, com uma rara
exceção, dão margem para que esse tipo de interpretação equivocada seja feita;
c) à conveniência, pois algumas pessoas interpretam
convenientemente um Jesus tatuado em Ap 19.16, porque, ao fazerem isso, estão
encontrando um apoio "bíblico" que legitima o uso de tatuagens por
parte destas mesmas pessoas.
Particularmente, creio que o problema todo esteja
principalmente nos dois primeiros itens. De qualquer forma, depois de receber
vários emails de pessoas questionando sobre a hipótese de Apocalipse 19.16
descrever Jesus “tatuado”, resolvi escrever esse artigo a fim de tentar
esclarecer o significado deste verso tão mal compreendido nos dias de hoje,
principalmente pelos jovens. Vejamos, então, Ap 19.16 do ponto de vista
lingüístico, teológico e cultural.
I – O PONTO DE VISTA LINGÜÍSTICO
O texto grego original de Ap 19.16 diz o seguinte: kaì échei
epì tò himátion kaì epì tòn meròn autou ónoma gegramménon. Basileùs basiléon
kaí kýrios kyríon. Se traduzirmos este verso ao pé da letra, ele ficará dessa
forma: "e tem sobre a veste e sobre a coxa dele um nome escrito: Rei dos
reis e Senhor dos senhores".
No que diz respeito ao aspecto linguístico, observa-se no
texto grego que a primeira e a sexta palavras do versículo (sublinhadas) são as
mesmas. Trata-se da conjunção "kaì" que normalmente é traduzida como
"e" ou "também", de acordo com o contexto em que ela aparece.
Todavia, embora o primeiro "kaì" de Ap 19.16 possa ser traduzido como
"e", ou seja, "e tem sobre a veste (...)", o segundo
"kaì", por outro lado, pode ser entendido como um "kaì"
epexegético ou explicativo. Em outras palavras, o segundo "e" do
versículo, "(...) e sobre a coxa dele" deveria ser traduzido de forma
explicativa, como, por exemplo, "ou seja", "isto é",
"a saber”, "quer dizer" etc. Sendo assim, a tradução mais
apropriada para Ap 19.16 seria: "e tem sobre a veste, isto é, [que está]
sobre a sua coxa um nome escrito: Rei dos reis e Senhor dos senhores".
George Ladd, que concorda com a interpretação que estamos
dando, oferece uma tradução ligeiramente diferente: "no seu manto, isto é,
onde ele cobre sua coxa”. Ladd ainda acrescenta que "não é mencionada
nenhuma razão por que o nome estaria escrito na coxa". Além de Ladd, Henry
Alford também concorda com a nossa interpretação e faz o seguinte comentário:
"A maneira usual de tomar as palavras é supor o kaí
epexegético ou definitivo das palavras anteriores, "sobre Sua veste",
e que parte dela [da veste] está cobrindo Sua coxa".
Some-se a estes autores ainda a opinião de Champlin, segundo
quem, entre outros significados, o texto também pode ser traduzido como
"...sobre vestes, a saber, sobre sua coxa...", o que se harmoniza com
o significado que entendemos ser o mais correto para esse texto.
Infelizmente, de todas as versões bíblicas em português que
consultei, apenas uma traduz Ap 19.16 refletindo o seu significado de forma
mais correta. Trata-se da Edição Contemporânea de João Ferreira de Almeida. Ela
traduz Ap 19.16 assim: "No manto, sobre a sua coxa tem escrito o nome: Rei
dos reis, e Senhor dos senhores".
Portanto, a partir da perspectiva linguística podemos
assegurar que a frase “Rei dos reis e Senhor dos senhores” de Apocalipse 19.16
não está "tatuada" na "coxa" de Jesus. Muito pelo
contrário, estes dizeres estão escritos na “veste” (ou “manto”) de Jesus, a
qual, por sua vez, cobre a sua coxa.
II – O PONTO DE VISTA TEOLÓGICO
Antes de entrarmos no ponto de vista teológico em si, devemos
dizer aqui que o livro de Apocalipse foi escrito aproximadamente na metade da
década do ano 90 d.C. Isto quer dizer que ele foi escrito por João cerca de 50
a 60 anos depois da morte e ressurreição de Jesus. Portanto, Jesus já possuía
(havia mais de meio século) um "corpo glorificado", imaterial, quando
João escreve as linhas de Ap 19.16.
Já no que se refere ao aspecto teológico, Ap 19.16 está
inserido dentro do contexto de uma visão que João teve (cf. Ap 19.11), devendo
ser entendido, portanto, de forma "simbólica", isto é,
"não-literal". Apesar de alguns comentaristas compreenderem Ap 19 à
luz da queda da Babilônia – símbolo de Roma – conforme Ap 18, contudo, Ap 19
aponta para algo bem maior, a saber, a vitória escatológica completa de Deus e
do Seu povo sobre o mal em geral, vista sob a perspectiva contextual mais ampla
de Ap 19.11-21.8.
Assim, o título "Rei dos reis e Senhor dos
senhores" escrito na "veste" de Jesus, se entendido corretamente
de forma "simbólica", era aplicado, segundo a tradição judaica, ao
próprio Deus, o qual era visto como Rei suserano que governava acima de todos
os reis da Terra. Isto quer dizer que, Jesus, ao receber em Ap 19.16 o mesmo
título majestoso que Deus recebia no judaísmo, estava se igualando a Ele em Sua
glória e divindade.
Além do mais, se entendermos Ap 19.16 como uma referência
literal à "coxa tatuada" de Jesus (se este fosse realmente o caso, o
que não é), teríamos que entender literalmente também outra visão de João na
qual Jesus é descrito como tendo: "cabelos brancos como a lã branca, olhos
como chama de fogo, pés como latão reluzente, voz como a voz de muitas águas,
boca da qual saía uma espada afiada e rosto como o sol" (cf. Ap 1.12-17),
o que seria bastante complicado.
Enfim, sob a perspectiva teológica também podemos afirmar que
Jesus não tinha uma "tatuagem" feita em sua "coxa".
III – O PONTO DE VISTA CULTURAL
Por fim, sob o ponto de vista cultural, creio que sejam
bastante apropriadas as palavras de Champlin sobre Ap 19.16. Este autor nos
fornece as seguintes informações:
"(...) havia um antigo costume de gravar o nome do
artista sobre a coxa de uma estátua. (...) A arqueologia tem encontrado figuras
assírias com inscrições gravadas sobre ela, bem como nas vestes que encobrem
seus corpos. Também é verdade que os cavalos, entre os gregos, traziam sinais
identificadores sobre suas pernas traseiras".
Porém, Keener explica que "na antigüidade romana, os
cavalos e as estátuas eram às vezes marcados com ferro na coxa, mas as pessoas
não". Aliás, esses exemplos fornecidos por Champlin e Keener, note-se, são
extraídos de um contexto "pagão" (assírio e greco-romano), e não
"judaico" ou "judaico-cristão"! Vale citar aqui as palavras
de Alfred J. Kolatch, segundo quem,
"Foi proibido aos judeus fazerem isto [isto é, tatuagens
ou incisões no corpo] não só porque era sinal de idolatria, mas também porque
vai contra as proibições bíblicas de derramar sangue e maltratar o corpo que
Deus deu ao ser humano".
Tendo esses dados em mente, seria, então, simplesmente
impensável imaginar um judeu dos tempos bíblicos tatuados (e Jesus era judeu!).
Tal fato seria o cúmulo do sacrilégio!
Portanto, do ponto de vista cultural também não é correto
afirmar que Jesus possuía uma "tatuagem" em sua "coxa". Tal
prática seria totalmente estranha à cultura (judaica) da qual ele, Jesus, fazia
parte.
CONCLUSÃO
Concluindo, um dos grandes problemas que ocorre na
interpretação da Bíblia é que nós, muitas vezes, a fazemos partindo do nosso
próprio contexto vivencial. Dito de outra maneira, muitas vezes nós projetamos
para dentro da Bíblia nossas experiências pessoais, vivências, pressuposições e
ideologias – o que é chamado no campo da interpretação bíblica de "eisegese",
em vez de buscarmos extrair do texto bíblico aquilo que ele próprio quer nos
dizer – o que é conhecido como "exegese".
Bem, de qualquer forma, cada um é livre para fazer o que
quiser do "seu" corpo (o qual, na verdade, não é "seu", mas
de Deus, quem o criou e, portanto, detém direitos sobre ele). Porém, se alguém
for fazer qualquer tatuagem no corpo, fique à vontade. Só não vá, entretanto,
sair dizendo por aí que você está fazendo isso porque a "tatuagem"
que Jesus tinha em sua "coxa" te autoriza a proceder dessa forma..
BISPO/JUIZ.MESTRE E DOUTOR EM ÊNFASE E
DIVINDADES DR.EDSON CAVALCANTE