SANTIDADE AO SENHOR, O BOM SAMARITANO
Afinal, o que é santidade?
Não é aos ateus nem aos visitantes das nossas igrejas que dirijo esta pergunta, mas aos próprios crentes, aos que já são membros duma igreja.
Vejamos em primeiro lugar qual o significado de santidade nas Escrituras.
A palavra hebraica geralmente traduzida por santo, é a palavra “kadosh”, que corresponde à palavra grega “ágios” que na origem significavam simplesmente separado.
Por exemplo, em João 10:36 “Àquele a quem o Pai santificou, e enviou ao mundo.....” aqui, santificar só pode significar separar ou consagrar.
Mas então, como e porque é que o significado destas palavras: santo, santidade, santificar... evoluiu até ao significado que hoje lhe atribuímos de pureza, justiça, bondade etc, quase que identificando santidade com os atributos do nosso Deus?
Há muitas passagens no Pentateuco que nos falam em santidade, mas trata-se sempre de uma santidade ritual, ou santidade higiênica. Mesmo no Sinai, o povo teve de lavar as suas vestes para se santificarem, mas era uma santidade que significava pureza ritual a simples ausência de sujidade (sujeira imundícia).
Nessa época, a máxima expressão de santidade, talvez fosse o sumo-sacerdote que tivesse tomado uns tantos banhos rituais, e podemos pensar num cadáver, como o máximo de imundícia, ou o desgraçado do leproso, rejeitado e escorraçado por todos, obrigado a gritar nas ruas a causa da sua doença, e do seu crime, “Imundo... imundo...”
É esta a informação que encontramos em quase todo o Velho Testamento. Somente na época de Jeremias e Isaías (600 a 500 AC) encontrei as primeiras referências a um outro conceito de santidade, nomeadamente em Isaías 1:11/17 em que o Senhor rejeita os holocaustos efetuados com todo o rigor da velha lei... Nomeadamente o vr. 16 “Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade dos vossos atos de diante dos meus olhos: cessai de fazer mal.” Nota-se, nesta passagem, que purificação já é alguma coisa mais que simples limpeza higiênica e passa a relacionar-se com a bondade.
Mas é certamente nos evangelhos onde a santidade passou a ter o significado que conhecemos hoje. Uma das principais passagens encontramos em Mateus 15:11 “O que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina o homem.” Em contraste com pureza das comidas e a preocupação com os animais imundos que não podiam ser utilizados na alimentação, Jesus preocupa-se com a pureza nas palavras e pensamentos.
Gostaria hoje de meditar convosco, numa dessas passagens, em que o Mestre põe em contraste os dois conceitos de santidade. Essa passagem, bem sei que poderá causar certa admiração a alguns, é a parábola do bom samaritano. Vejamos o que é que essa parábola tem a ver com santidade.
A maior parte das pregações sobre o assunto, pelo menos aquelas que ouvi e li, destaca a indiferença do sacerdote e do levita, “que mais obrigação tinham de ajudar....”, é a informação mais vulgar, e muitos outros dão uma interpretação alegórica, afirmando que “descer de Jerusalém” é descer dos assuntos espirituais para tratar das coisas materiais do mundo em que vivemos etc...
Certamente que como exortação, tudo isso é possível, mas não num estudo bíblico. Deixemos pois estes engenhosos pensamentos, para investigar o pensamento original do nosso Mestre, pois estudo bíblico não é qualquer estudo que mencione versículos bíblicos, nem podemos aceitar que qualquer sentido que se possa dar a uma passagem seja uma correta interpretação da Bíblia, por mais bem intencionado que seja o seu autor e por mais simpática que seja a sua ideia.
Esta é das parábolas consideradas de certa maneira um tanto “pacíficas” nos nossos dias. Parece à primeira vista que já sabemos tudo sobre a frieza dos religiosos e do comportamento do samaritano... Mas trata-se na verdade duma crítica que Jesus apresenta, não só aos religiosos do seu tempo, como à própria teologia.
Tive de chegar a essa conclusão, ao examinar o contexto desta parábola.
Vamos começar por ler nas nossas bíblias em Lucas 10:21/22. “Naquela mesma hora, se alegrou Jesus no Espírito Santo, e disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que escondestes estas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelastes às criancinhas; assim é, ó Pai, porque assim te aprouve. Tudo por meu Pai me foi entregue; e ninguém conhece quem é o Filho, senão o Pai, nem quem é o Pai, senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar.”
Isto foi dito perante os discípulos e alguns doutores da Lei, como veremos mais adiante. Segundo a religião eles se consideravam os grandes e entendidos... É mais ou menos como juntar todos os pastores, professores e alunos do seminário, missionários, professores de escola dominical, evangelistas, presbíteros, diáconos etc. para depois orar dizendo... “Graças porque há coisas que estes não sabem, mas esse menino de escola dominical, ou esse velhote quase analfabeto, o irmão João ou a irmã Maria, esses conseguem perceber, porque tu lhes revelaste”!!!... Como estudante de teologia não posso deixar de me sentir desafiado por esta atitude do Mestre. Parece que há coisas que não podemos alcançar só pelo nosso raciocínio, mas por vezes as pessoas simples conseguem compreender melhor, por ser produto de revelação, e o Espírito do Senhor se revela a quem quiser, quer ignorantes ou entendidos, utilizando todos os métodos que entender, mesmo aqueles que a nossa teologia e a nossa tradição considera indesejáveis, pois só o Senhor é soberano.
Penso que este episódio deve estar relacionado, ou deve estar na origem do que vamos ler a partir do versículo 25.... em Lucas 10:25/29. “E eis que se levantou um certo doutor da lei, tentando-o, e dizendo: Mestre, que farei para herdar a vida eterna? E ele lhe disse: Que está escrito na lei? Como lês? E, respondendo ele, disse: Amarás ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao próximo como a ti mesmo. (a).
E disse-lhe: Respondeste bem; faz isso, e viverás. Ele, porém, querendo justificar-se a si mesmo, disse a Jesus: E quem é o meu próximo?” (b).
Vr.25... Um doutor da lei, fez uma pergunta a Jesus?!!!. Parece um caso pouco vulgar nessa cultura, um teólogo desse nível fazer uma pergunta ao filho dum carpinteiro, que para eles era um leigo em teologia.
O evangelista Lucas, diz aqui que foi para experimentar a Jesus. No entanto, Lucas não foi apóstolo, ele não estava presente neste acontecimento e limitou-se anos mais tarde, a compilar todas as informações sobre a vida de Jesus. Talvez fosse essa a opinião dos primitivos crentes. Não digo que não seja verdade. Quem somos nós, para vinte séculos mais tarde tentar descobrir alguma coisa de novo.
Mas penso que, pelo menos, não devemos abandonar a possibilidade de estarmos perante uma pergunta sincera deste homem. Digo isto porque Jesus respondeu, o que geralmente não acontecia, quando havia perguntas mal intencionadas. É bem possível que este teólogo ficasse tocado pela pregação de Jesus, e que por baixo da sua aparente calma e segurança tivesse uma consciência inquieta e incomodada pela pregação do Mestre... porque o doutor da Lei bem sabia, melhor do que ninguém quais os pontos fracos, contradições e principalmente a grande separação entre a sua teoria e a vida prática do dia a dia.
Ele começa pela pergunta mais importante: “Que farei para herdar a vida eterna?” Mas, será que não havia informação sobre o assunto na Velha Lei?
Jesus o remete novamente para a Lei. Afinal, parece à primeira vista, que havia solução para a vida eterna na Velha Lei. Faltava somente pôr em prática tudo aquilo que ele já conhecia.
Mas o doutor da Lei, levanta outra questão: “Quem é o meu próximo?”
Lucas diz no seu evangelho, que a pergunta foi para se justificar, dando a entender que ele não fazia nem uma coisa nem outra, nem amava a Deus de todo o seu coração, nem ao próximo como a si mesmo. Mas julgo que seria precipitado da nossa parte limitarmo-nos a esta explicação.
Segundo o investigador Joaquim Jeremias, esse assunto era muito polemico nessa época. Pois, se ninguém tinha dúvidas do que significava ser membro do povo de Israel, pois tudo isso estava muito bem explicado, pois eram os descendentes do povo de Israel incluindo os prosélitos e os escravos já circuncidados, o mesmo não acontecia com a palavra “próximo”, cujo significado dava origem a várias interpretações.
Para muitos dos fariseus, o seu próximo limitava-se aos outros fariseus.
Os essênios consideravam como atitude louvável o odiar todos os filhos das trevas. Até o nosso Mestre faz uma referência a esta atitude em Mateus 5:43 “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e aborrecerás o teu inimigo....”, portanto o inimigo não podia ser o próximo.
O grande problema, para a teologia da época seria a pergunta: Até que ponto deverei ser tolerante? Devo considerar somente a minha família como o meu próximo?... E também os meus vizinhos?... E também os outros judeus?... Até onde vai o conceito de “próximo”?
Penso que para os judeus mais ortodoxos o próximo seriam somente os outros judeus. É verdade que várias passagens veterotestamentárias em especial nos livros de Êxodo e Levítico nos falam dos direitos dos estrangeiros, lembrando o facto dos próprios judeus terem sido estrangeiros no Egipto, e em Deuteronômio aparecem algumas vezes referência aos direitos dos estrangeiros, viúvas e órfãos.
No entanto, não podemos ignorar a realidade desse contexto histórico em que havia grande rivalidade entre judeus e samaritanos. O velho problema da rivalidade entre os templos de Jerusalém e Garizim, por motivos históricos, religiosos e económicos, estava no seu auge.
Eu fiquei chocado quando soube pelo livro do historiador Joaquim Jeremias, que o Templo de Garizim, que os samaritanos construíram e que, com todos os seus erros se destinava a louvar o Deus supremo, foi atacado e destruído pelos judeus, no ano 129 A.C..... Esta é uma informação que não vem na Bíblia e que a nossa literatura não costuma mencionar.
Como represália, segundo Josefo, o historiador da antiguidade, houve um samaritano que por ocasião da Páscoa, durante a noite, abriu alguns sepulcros de Jerusalém, desenterrou ossos de cadáveres e os espalhou pelo Templo de Jerusalém para o tornar impuro.... Isto aconteceu já depois do nascimento de Jesus, que devia ser um menino quando estas notícias abalaram todo o povo de Israel.
Jesus teria certamente observado muitas vezes, os judeus mais “religiosos” que todas as tardes, ao pôr-do-sol se viravam para Samaria para amaldiçoar os samaritanos e pedir para que Deus os destruísse para sempre.
Penso que temos de entender a pergunta desse doutor da Lei, no contexto histórico em que se encontravam, em que havia fortes tensões não só entre judeus e estrangeiros, mas principalmente para com os samaritanos. Para os que rodeavam o Mestre, o próximo seriam os outros judeus... talvez também alguns estrangeiros, se estivessem circuncidados, mas os samaritanos!!! isso é que nunca... nem pensar nisso.
É neste ambiente, carregado de ódio e emoção, que Jesus apresenta a parábola do bom samaritano, que vamos ler, do versículo 30 a 37. Lucas 10:30/37
“E, respondendo Jesus, disse: Descia um homem de Jerusalém para Jericó. E caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram, e, espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto.
E, ocasionalmente, descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. E de igual modo, também, um levita, chegando àquele lugar, e vendo-o, passou de largo.
Mas, um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele, e vendo-o, moveu-se de íntima compaixão; E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele; E, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e, tudo o que de mais gastares, eu to pagarei, quando voltar
Qual, pois, destes três, te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores?
E ele disse: O que usou de misericórdia para com ele. Disse, pois, Jesus: Vai, e faz da mesma maneira.”
...descia um homem de Jerusalém para Jericó... Com esta afirmação, nós imaginamos o mapa de Israel, que muitas vezes temos nas nossas bíblias, e sabemos que se trata de duas cidades vizinhas. No entanto, a reação dos ouvintes de Jesus foi certamente bem diferente, pois logo devem ter identificado esse local como um local de alto risco.
As duas cidades estavam afastadas cerca de 27 quilômetros através de caminhos que nos nossos dias o autocarro (ônibus) de turismo percorre rapidamente, mas nessa época seria um simples caminho íngreme que subia pela montanha acima serpenteando por entre as rochas, num terreno muito acidentado, com cavernas onde os malfeitores facilmente se escondiam, pois os romanos, que construíram uma magnífica via romana em direção à moderna Samaria, entenderam que a velha cidade de Jerusalém não tinha interesse comercial que justificasse a construção duma via romana.
Mas havia outro motivo para que esse local fosse dos mais perigosos. É que do ponto de vista dos assaltantes, era dos locais mais “rentáveis”, onde geralmente o crime compensava, pois todo o judeu de longe ou de perto, trazia os seus dízimos e ofertas para entregar no Templo de Jerusalém. Os de perto, traziam os seus animais para oferecer, e os de longe traziam em dinheiro o produto da venda dos animais oferecidos ao Senhor.
Além desses peregrinos, havia também intenso tráfego de religiosos, pois segundo nos informa o historiador Joaquim Jeremias, muitos sacerdotes e levitas que exerciam as suas funções em Jerusalém, moravam em Jericó ou periodicamente “fugiam” da confusão da grande cidade para descansar no ambiente mais calmo de Jericó.
De tal maneira os assaltos aos peregrinos, nesse local, eram comuns, que acabaram por afetar a própria economia do Templo, que criou uma organização policial para patrulhar esse caminho e proteger os peregrinos, protegendo também a economia do Templo.
Talvez o mais natural seria o assalto a um homem que subisse a Jerusalém, em especial um homem que viesse de longe e que trouxesse os dízimos e ofertas de alguns anos de vida próspera em terras distantes... Mas este descia, voltava de Jerusalém. Mesmo assim, talvez fosse um alvo apetecível pelos assaltantes, pois deveria ainda ter dinheiro para uma longa viagem de regresso à sua terra, dinheiro que o viajante tentou defender, pois houve luta e ficou quase morto à beira da estrada.
Temos depois a descrição do sacerdote e do levita que passaram sem dar ajuda ao viajante que aparentemente já estaria quase morto.
Penso que perante esta afirmação, a reacção e o pensamento do homem do nosso tempo é bem diferente, talvez mesmo o oposto, ao pensamento dos que escutavam o nosso Mestre.
O nosso primeiro pensamento é que Jesus apresenta o sacerdote e o levita para mostrar que até aqueles que mais obrigação teriam de ajudar, por serem religiosos, até esse falharam. É também esta a interpretação da maior parte dos pregadores, dos nossos dias, mas suponho não ser essa a intenção do Mestre.
Tanto o sacerdote, como o levita, certamente já conheciam muito bem esse caminho tão perigoso, já estavam habituados a ver cenas de violência, assaltos, já tinham visto pessoas mortas à beira do caminho... e também conheciam muito bem a Velha Lei.
Certamente que conheciam todo o Velho Testamento muito melhor do que nós, pois eles o liam e o estudavam, o que já não está a acontecer connosco... Por vezes tenho a sensação de que estamos a formar um novo cânon....., um cânon do cânon veterotestamentário, pois há passagens do Velho Testamento que são lidas nas nossas igrejas e há passagens em que nunca há tempo para ler... que ficam sempre para a próxima vez... passagens que os nossos pregadores têm medo de encarar, como esta que vamos mencionar.
O viajante já não se mexia, aparentemente era já um cadáver. E o que dizia a Velha Lei sobre o cadáver? Vejamos em Números 19:13 “Todo aquele que tocar a algum morto, cadáver de algum homem que estiver morto, e não se purificar, contamina o tabernáculo do Senhor: aquela alma será extirpada de Israel; porque a água da separação não foi espargida sobre ele, imundo será; está nele ainda a sua imundície.”
É evidente que se o sacerdote ou o levita tocasse no viajante e esse já estivesse morto ou viesse a falecer nessa altura, ficariam impuros e impossibilitados de exercer as suas funções no Templo durante sete dias, durante os quais teriam de se purificar segundo indicado nos versículos anteriores em Números 19:1/12
Afinal.... era a própria religião que os impedia de ajudar... Penso que foi este o pensamento que o Mestre transmitiu aos seus ouvintes e que em grande parte já se perdeu nos nossos dias. Eles não ajudaram porque eram religiosos e queriam permanecer religiosamente puros e religiosamente perfeitos.
Esta é uma das parábolas mais polemicas que Jesus contou e todos os seus ouvintes dessa ocasião assim devem ter compreendido, aceitando inicialmente com entusiasmo a crítica anti-clerical do Mestre, esperando o terceiro personagem, que tudo indicava fosse um vulgar judeu (judeu comum), pois nessas histórias havia normalmente três personagens.
É nessa altura que Jesus os escandaliza apresentando o samaritano, o inimigo, que os mais religiosos odiavam e amaldiçoavam. Foi um samaritano que o Mestre escolheu para herói desta história. Nos nossos dias, seria talvez um palestino.
A parábola não era somente anti-clerical, pois todos estavam incluídos na crítica do Mestre.
O samaritano não perguntou quem era o viajante. Não sabemos se ele conhecia bem as Escrituras e se sabia que iria ficar impuro por tocar num cadáver... Mas para os “religiosos” ele já era um impuro por ser samaritano... portanto nem se preocupou com isso.
Diz-nos o versículo 34 que ele “...aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho...” É bem possível que transportasse consigo azeite e vinho para a viagem, pois o azeite era o protetor solar para a sua pele, num clima quente e seco e o vinho seria para acompanhar as suas refeições. Nessa altura, utilizou o vinho devido às suas propriedades anti-sépticas e anestésicas e o azeite como protetor da pele.
É interessante a curta conversa do samaritano com o hospedeiro. É bem possível que o samaritano fosse um comerciante habituado a viajar, pois parece que conhecia bem o hospedeiro e a expressão utilizada “...quando voltar”, parece indicar pessoa conhecida e respeitada. A importância entregue, de dois denários, equivalia a dois dias de salário mínimo.
Jerusalém era uma cidade edificada no alto do monte que dependia do exterior, quer para alimentação dos seus habitantes, quer para matéria-prima para as suas pequenas indústrias. Muitos estrangeiros eram os profissionais de transporte para abastecimento da cidade. É bem possível, que entre o hospedeiro e o samaritano, embora separados pela religião, os interesses comerciais em comum tivessem criado uma profunda confiança e amizade.
Mas afinal, que conclusões podemos tirar desta parábola?
Inicialmente, Jesus apela para a Lei, mas depois o seu herói é precisamente o samaritano, que não seguiu a lei veterotestamentária, e que segundo essa mesma Lei deveria ser considerado impuro.
Não há dúvida de que, de acordo com a Lei, tanto o sacerdote como o levita ficariam impuros sob o aspecto religioso se tocassem no viajante e ele viesse a falecer nas suas mãos. Mas talvez tenhamos de considerar uma certa hierarquia das Leis.... e a Lei de do amor de Cristo, que se deve manifestar em todos os seus é a nossa Lei suprema, que tudo ultrapassa e que inclusive pode inverter os nossos valores.
Mas não estão todos estes problemas já ultrapassados, depois de 20 séculos de cristianismo? Para quê lembrar essas velhas leis, há tanto ultrapassadas?
Nos nossos dias, tudo que as igrejas ou juntas missionárias decidem, não está sempre em sintonia com o pensamento de Jesus? Não vivemos nós de acordo com os ensinos do nosso Mestre?
Podemos imaginar, como seria a história do bom samaritano contada nos nossos dias?
Era domingo de manhã, e estava quase na hora da escola dominical. À beira da estrada estava um homem caído. Já não se mexia e estava todo sujo do sangue que derramara.
Passa o carro do Pastor da igreja local, que até poderia ajudar.... se não estivesse já na hora da escola dominical... e com tanta gente à sua espera na igreja... Não. Em primeiro lugar estão as suas funções na igreja. Em primeiro lugar o Trabalho do Senhor... Mas o pastor sente-se tocado e exclama: “Mas que país é este!... Com toda esta insegurança nas nossas estradas.. Estou profundamente chocado com estes problemas... Mas isto não vai ficar assim... Vou já tomar providências.. É um bom tema para uma pregação... Venham logo à noite à minha igreja e logo vão ver a empolgante pregação que vou apresentar sobre a insegurança nas nossas estradas...” E o pastor fecha energicamente a porta do carro, e acelera a toda a velocidade a caminho da sua igreja, entusiasmado com a sua própria espiritualidade.
Depois vem o superintendente da Escola Dominical. Pára bruscamente o seu carro quando vê o homem ferido na borda da estrada.... e até poderia ajudar... se não estivesse já na hora da escola dominical. E logo nesta altura, em que no domingo anterior fez um apelo para que todos fossem pontuais.... Não. Em primeiro lugar estão as suas funções na igreja onde vai falar do amor de Jesus. Em primeiro lugar o “Trabalho do Senhor”.
Em seguida vem o imigrante, que veio de África, ou da Ucrânia, ou do Brasil, ou da Rússia, um jovem dinâmico e trabalhador. Está há pouco tempo em Portugal, mas já tem onde morar e até já comprou um carro muito usado em que é o terceiro ou quarto dono, mas é o seu carro, fruto do seu trabalho árduo em que faz os trabalhos que os outros não querem fazer.
Nesse domingo levanta-se cedo, lava o seu carro para lhe dar melhor aspecto, pois gastou as últimas economias a substituir o forro dos bancos já rasgados, por outros novos. Toma banho e veste as suas melhores roupas, para ir à igreja, à escola dominical.
Mas o Senhor tinha outros planos. Tinha para ele uma bênção que os outros desprezaram. Também vai a caminho da igreja, nesse domingo de manhã, quando vê o ferido à beira da estrada. Aproxima-se, vê que o ferido ainda respira. Não tem telemóvel (celular) para telefonar à ambulância, mas o ferido está a perder muito sangue e tem de tomar uma decisão urgente. Pega no ferido e coloca-o no seu carro. As suas melhores roupas ficam manchadas de sangue e lama, assim como o forro dos bancos que mandou colocar na semana passada. Leva o ferido às urgências (à emergência) do hospital, onde tem de prestar declarações às autoridades policiais.
Finalmente chega à sua igreja, já quase no fim da escola dominical. É uma igreja tradicional, onde nesse domingo de manhã todos se apresentam com as suas melhores roupas.
Quando termina a escola dominical, como de costume, apresentam o relatório desse dia. Alunos inscritos... Visitantes... Alunos pontuais... O pastor e o superintendente da escola dominical respiram de alívio. Conseguiram chegar a horas, foram pontuais.... O que seria do seu prestígio como crentes, se não dessem o bom exemplo.
Mas muitos olham para o desgraçado que chegou quase no fim... Veio com a roupa toda suja.... Mas que falta de respeito pela Casa do Senhor, onde tudo deve ser santo, limpo e perfeito! Quando será que ele vai compreender o Evangelho? Quando será que se vai converter ao Senhor?
Nesse domingo o herói da nossa ilustração volta para casa.
Poderíamos dizer que dava graças a Deus e que mostrava uma grande fé... mas infelizmente, na vida real não há muitos heróis...
Ele está desiludido, foi demais para a sua fé... Tentou fazer o melhor e bem sentiu o desprezo e os olhares de reprovação dos “santos” da sua igreja.
Esta ilustração acaba mal, como tudo, ou quase tudo, na vida real. Mas, quem aceita Cristo como seu Salvador e Mestre, tem de aceitar o seu desafio e sujeitar-se a tudo que possa acontecer.
Será que depois de 2000 anos já compreendemos a mensagem do nosso Mestre e o seu conceito de santidade? Será que tudo mudou? Será que ainda nem tudo mudou?
Será que temos de voltar ao princípio?
Que o Senhor nos oriente na nossa resposta a estas perguntas.
Que possamos refletir com o nosso Mestre. Este pormenor é muito importante, “refletir com Jesus” pois tanto para o nosso Mestre como para o doutor da Lei a pergunta era a mesma “Quem é o meu próximo?”
Mas o doutor da Lei procurava uma definição teórica, uma definição teológica de “próximo” (nisso nós somos bons), enquanto para Jesus isso significava ação.
Mais importante do que uma definição teórica da palavra “próximo”, é perguntar: Onde está o meu próximo para que o ame e o ajude como Jesus ensinou. Pois só esses compreenderam quem é o seu próximo.
Apóstolo. Capelão/Juiz. Mestre e Doutor em Ciências da Religião Dr. Edson Cavalcante
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