O ARCANJO MIGUEL E O
DIABO...
“Quando Miguel, o arcanjo, teve uma controvérsia com o Diabo e
disputava acerca do corpo de Moisés, não se atreveu a lançar um julgamento
contra ele em termos ultrajantes, mas disse: ‘O Senhor te repreenda.’” (Judas
9)
Embora a carta de Judas seja curta, ela contém informações não
encontradas em outra parte na Bíblia. Somente ela menciona a disputa do arcanjo
Miguel com o Diabo acerca do corpo de Moisés, e a profecia feita séculos antes
por Enoque. (Jz 9, 14, 15) Não se sabe se Judas recebeu estas informações por
revelação direta ou por transmissão fidedigna (quer oral, quer escrita). Neste
último caso, isto talvez explique a presença de uma referência similar à
profecia de Enoque no livro apócrifo de Enoque (que se pensa ter sido escrito
provavelmente durante o segundo e o primeiro século a.C.). Uma fonte comum pode
ter fornecido a base para a declaração feita tanto na carta inspirada como no
livro apócrifo (A assunção de Moisés). O
relato da Assunção
de Moisés conta
o seguinte: a
estranha história da
morte de Moisés
é relatada em
Deuteronômio 34,1-6. A
Assunção de Moisés agrega a
esse relato a
história posterior de
como o corpo de Moisés foi entregue ao arcanjo Miguel para lhe dar
sepultura. Então o diabo
disputa com Miguel
pelo corpo de
Moisés. Baseava sua pretensão fundamentalmente em
dois motivos. Primeiro,
o corpo de Moisés era matéria; a matéria é má e,
portanto, o corpo de Moisés lhe pertence,
visto que a
matéria é seu
domínio. Segundo, Moisés
era um assassino, pois
acaso não tinha
dado morte ao
egípcio a quem
viu castigar os hebreus? (Êxodo 2,11-12). E se Moisés tinha sido assassino,
o diabo tinha direito a reclamar seu corpo.
Várias teorias têm sido formuladas quanto ao que foi esta luta
sobre o corpo de Moisés. Uma delas é que Satanás, sempre o acusador do povo de
Deus (Apocalipse 12,10), pode ter resistido à elevação de Moisés para a vida
eterna em razão do pecado de Moisés em Meribá (Deuteronômio 32,51) E seu
assassinato do egípcio (Êxodo 2,12).
Agora, o ponto que Judas assinala é este: Miguel era um arcanjo;
o diabo era o diabo; Miguel estava empenhado numa tarefa que Deus lhe tinha
encarregado; o demônio procurou impedi-lo dizendo que não tinha direito algum.
Mas até em tais circunstâncias Miguel não falou nada mau do diabo, nem proferiu
nenhuma acusação contra ele, mas sim lhe disse, simplesmente: “O
Senhor te repreenda!”
O que Judas
quer destacar é que, se o maior dos anjos bons não quis
dizer nada mau contra o maior dos
anjos maus, até em circunstâncias como
essas, então certamente nenhum homem pode falar mal
de nenhum anjo.
Note como Miguel agiu nessa disputa com Satanás. O relato de
Judas não diz o que Satanás queria fazer com o corpo de Moisés, mas podemos ter
certeza de que suas intenções não eram boas. Talvez ele quisesse usar os restos
mortais daquele homem fiel para promover a adoração falsa. Miguel frustrou a
trama perversa de Satanás, mas também demonstrou notável autocontrole. Aquele
anjo mau certamente merecia ser censurado mas Miguel reconheceu que apenas Deus
podia julgar Satanás. (João 5,22) Como arcanjo, Miguel tinha muita autoridade.
Mesmo assim, ele humildemente se submeteu a Deus em vez de tentar apoderar-se
de mais autoridade. Além de humildade ele demonstrou modéstia, ou seja,
reconheceu suas limitações.
Judas cita um exemplo de alguém que respeitou a autoridade
devidamente constituída. Este relato fascinante, exclusivo de Judas nas Escrituras,
ensina duas lições distintas. Por um lado, ensina-nos a deixar o julgamento
entregue a Deus. Satanás evidentemente queria fazer mau uso do cadáver do homem
fiel Moisés, para promover uma adoração pagã. Como isso era iníquo! No entanto,
Miguel refreou-se humildemente de expressar um julgamento, porque somente Deus
tinha tal autoridade. Então, quanto mais devemos nós refrear-nos de julgar
homens fiéis, que procuram servir a Deus.
Judas foi inspirado a escrever sobre esse incidente por um
motivo: infelizmente, alguns cristãos na época de Judas não eram humildes. Eles
arrogantemente ‘falavam de modo ultrajante de todas as coisas que realmente não
conheciam’. (Judas 10) Para nós, humanos imperfeitos, é muito fácil ser
vencidos pelo orgulho. Como agimos quando não entendemos algo que é feito na
Igreja, talvez envolvendo alguma decisão dos bispos? Se começarmos a falar de
modo negativo, crítico, apesar de não ser possível saber de todos os fatos
envolvidos nas decisões, não estaremos demonstrando falta de humildade? Em vez
de agir assim, imitemos Miguel, não julgando assuntos que Deus não nos deu
autoridade para julgar.
Miguel tem de travar a luta vitoriosa contra Satanás por
incumbência do Senhor (Ap 12,7-9). Por isso é tanto mais significativo que
Miguel, na ocasião passada em que disputava o corpo de Moisés, não se dirigiu
ao diabo com uma sentença blasfemadora, mas deixou a “repreensão” totalmente
por conta do Senhor, que como repreensão divina possui máxima eficácia (Sl
18.15; 104,7; 106,9) e por isso também pode ser traduzido por “punir”. Como,
então, seres humanos ousariam blasfemar glórias, ainda que sejam caídas e
hostis a Deus? A moral que Judas aponta é que Miguel mostrou reservas até mesmo
em seu relacionamento com o diabo,
enquanto os falsos mestres não exibiam reverência por
qualquer autoridade.
Não sabemos o que teriam dito sobre os anjos aqueles homens aos
quais atacava Judas. Talvez dissessem que os anjos não existiam, ou que eram
maus e estavam a serviço do deus mau. Esta é uma passagem que, sem dúvida,
significa muito pouco
para nós, mas
que, da mesma maneira, para
não duvidar disso,
configuraria um poderoso
argumento contra aqueles aos quais Judas se dirigiu...
Apóstolo. Capelão/Juiz. Mestre e Doutor em Ciência da Religião
Dr. Edson Cavalcante
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