RISPA UMA MÃE ZELOSA.
Gosto de textos intrigantes, pois sempre escondem tesouros em suas entrelinhas. Tesouros nunca estão à vista de todos. É preciso procurar com afinco, persistência e atenção para encontrá-los. Alguns estão no fundo dos oceanos, uns no mais profundo da terra, outros precisam de mapas e orientações bem específicas; mas outros estão nas entrelinhas das narrativas bíblicas. Esses possuem um valor mais elevado que qualquer outro, pois nos ensinam a viver rica, produtiva e sabiamente.
Temos na Bíblia, em II Sm. 21. 1 - 14, o relato de um fato aterrador, para nós muito longe da cultura daqueles tempos primitivos em que vigorava o “olho por olho, dente por dente”: No tempo dos reis, sobreveio uma fome de três anos sobre a terra de Israel. Davi consultou ao Senhor, que lhe revelou a causa. Como consequência, sete homens foram enforcados no monte perante o Senhor, pondo fim à calamidade.
Acontece que estes pobres rapazes tinham mães que os amavam e que muito devem ter sofrido em meio a todo este tão doloroso lance. Dois deles eram filhos queridos de Rispa e os outros cinco, de Merabe. Enquanto sobre esta reina o mais completo silêncio, em toda a narrativa é notório o comportamento de Rispa, filha de Aías, pois consta que ela estendeu um manto sobre os cadáveres, não permitindo que as aves do céu nem os animais do campo comessem aqueles corpos até cair a chuva. De dia e de noite velou pelos filhos. Mesmo já estando mortos. Tal gesto calou fundo no coração de Davi que foi forçado a tomar uma providência: Realizou um enterro digno para os supliciados, que foram enterrados com todas as honras, juntamente com Saul e Jônatas.
O que aprendemos ainda hoje com o gesto extremado de mamãe Rispa?
Rispa é um exemplo de vigilância e tenacidade mesmo depois da morte dos filhos. Isto revela o perfil de uma dedicada e amorosa mãe, daquelas que encaram a maternidade não apenas como uma responsabilidade, mas como uma bênção. Que veem nos filhos uma herança do Senhor.
Com tenacidade perseverou até que “Deus se tornou favorável para com a terra”, v. 14. Mães que oram pelos seus rebentos não desanimam diante das dificuldades; não consideram perda de tempo os momentos que gastam com os filhos, ou orando por eles; faça sol ou faça chuva, mesmo nos dias corridos como os de hoje “atendem ao bom andamento da sua casa”. Investem na prole visando o futuro, Pv. 31. 27.
Rispa não permitiu nem que os restos mortais dos filhos fossem vítimas de ataques de aves e outros animais. E olhe que ela velava mortos! Isto fala de responsabilidades e deveres familiares. Os filhos são personalidades em formação. São seres que dependem do amor, do exemplo, da autoridade, orientação e disciplina de pais e mães conscientes da missão que lhes foi delegada pelo Criador, a quem prestarão contas.
Dá pena ver, infelizmente, mães e pais, muita das vezes, acordando muito tarde, tentando regatar os filhos quando já estão ‘mortos’, totalmente dilacerados pelas “feras” e “aves de rapina” da atualidade: as drogas, o sexo precoce, a gravidez irresponsável, a violência, a Aids, a pedofilia, o alcoolismo, a permissividade.
Sabemos que a terra atravessa hoje, terríveis “dias de fome e sede”, v. 1, em que as “aves de rapina” e os “animais ferozes” estão vorazes, à caça de vitimas descuidadas, aos filhos expostos a toda sorte de pecados e armadilhas nas esquinas, nas escolas, nos cybers, até mesmo nos lares por meio da televisão, da Internete, de revistas. Tudo facilitado pela ausência ou pela aplicação de uma disciplina frouxa e leniente no lar.
Queridos pais e mães de hoje, se quereis preparar filhos saudáveis para a vida e para o serviço de Deus, precisais, urgentemente, não apenas de ajuda do Alto, mas também de comprometimento com a missão de “ensinar a criança no caminho em que deve andar”, Pv. 22. 6. Sim, porque não basta dar condições para que nada falte aos filhos em termos de educação de qualidade, alimentação, roupas, lazer, acesso a todo aparato tecnológico possível e imaginável. Urge criá - los na disciplina e no temor do Senhor, Sl. 34. 11. Urge impor limites e responsabilidades. Urge “cobrir” adequada e permanentemente os filhos, criando no lar um ambiente saudável, em que o respeito, o amor, a oração e a fé sejam o verdadeiro alicerce da família.
Do contrário, como Rispa, vereis vossos filhos pagarem pelos vossos erros.
O texto bíblico de 2 Samuel 21.8-14 baseia-se na breve história de uma mãe e seus dois filhos. Seu nome: Rispa. Esta mulher era filha de Aia e uma das concubinas do rei Saul; dessa união nasceram-lhe dois filhos: Armoni e Mefibosete. Um grave período de fome, que durou três anos, levou Davi a perguntar ao Senhor qual era a causa daquela tragédia. A resposta foi que tudo aquilo acontecia por causa da tentativa de Saul de destruir os gibeonitas e, assim, quebrar o pacto que Josué fizera com eles (Js 9).
De posse da resposta, Davi perguntou aos gibeonitas o que devia fazer para contornar aquela situação e eles pediram que lhes fossem entregues sete descendentes de Saul, para que fossem mortos. Neste “acordo de paz e reparação”, os dois filhos de Rispa com Saul, Armoni e Mefibosete, estavam entre os que foram entregues pelo rei. Depois de mortos, seus corpos foram deixados expostos em Gibeá. Rispa, a mãe dos rapazes, colocou-se sobre a rocha, perto dos cadáveres, e não permitiu que os pássaros ou qualquer outro animal tocassem neles, “desde o princípio da sega, até que a água caiu do céu”, (2Sm 21.10). Isso quer dizer que, num período de aproximadamente sete meses (esse era o período da colheita, que durava de abril a outubro), ela fez o improvável: não abandonou seus filhos, nem mesmo depois de mortos.
A dor daquela mulher de perder seus filhos se materializou em sua atitude. Dia e noite ela se pôs a afastar os animais que ousassem se aproximar dos cadáveres de seus filhos. Durante todo o período de dor, questionamentos e solidão que Rispa enfrentou por contemplar todos os dias os corpos de seus filhos, como se nunca tivesse ouvido seus risos e se unido a eles em seus sonhos e planos para o futuro, é possível que outras mulheres tenham se juntado a ela, ajudando-a nessa missão aparentemente sem qualquer sentido.
O que mais Rispa podia fazer naquela situação? O que fazer quando parece que nada mais pode ou vale a pena ser feito?
Talvez alguns a criticassem julgando-a como louca, histérica, mas é possível também que sua atitude despertasse a compaixão e a solidariedade de outros. O fato é que aquela mulher continuou exercendo seu papel de mãe com zelo, cuidado, persistência e coragem. Em meio aquele caos, ela encontrou algo para fazer por seus filhos: cuidar para que as aves e os animais não se alimentassem de seus corpos. Pode parecer uma atitude insana, estranha, sem nexo algum, mas Rispa nos deixa uma preciosa lição: cumprir o nosso papel, seja ele qual for, com cuidado e dedicação até o fim.
Aqui vão algumas lições que podemos aprender com Rispa:
1 - Todos têm o seu valor, independente do lugar que ocupam na comunidade no qual estão inseridos (2Sm 21.11). Quem era Rispa? Ela era concubina de Saul. Pouco sabemos sobre sua vida, mas uma coisa é certa: viver como concubina do rei não era tarefa fácil, apesar de todo glamour da vida palaciana. Portanto, não se julgue sem valor, incapaz, indigno ou impossibilitado para fazer algo ou ser alguém que provocará uma mudança radical em algum cenário à sua volta.
2 - Toda tarefa (missão - ministério) tem seu grau de importância (2Sm 21.10) - ainda que humana ou socialmente se tenha essa visão, abanar cadáveres durante meses, por exemplo, não parece ser algo muito significativo. Mesmo sendo Rispa a mãe "dos cadáveres", podemos pensar: “nada mais justo que a própria desempenhasse tal papel”. Ao contrário de Rispa, muitos pais desistem, antes mesmo que seus filhos morram fisicamente. Graças a atitude dessa mulher, as famílias que sofriam por verem seus entes queridos se deteriorando à vista de todos, usufruíram da atitude aparentemente sem qualquer valor.
3 - É preciso aprender a trabalhar sem os holofotes ou o reconhecimento de terceiros (2Sm 21.10a). A atitude de Rispa era um protesto solitário e é provável que ela não tenha intencionado alcançar resultados para além do enterro de seus filhos. No entanto, não somente seus filhos como todos os enforcados e também os restos mortais do rei Saul e seu filho Jônatas foram beneficiados com um sepultamento digno.
4. Cumpra seu papel, qualquer que seja ele, até o fim, 2Sm 21.10 b "... não deixou que se aproximassem deles as aves do céu de dia, nem os animais do campo de noite" - Qual o papel que, neste momento, cabe a você? Marido? Cumpra seu papel de esposo com fidelidade, amor, respeito e carinho até o fim. Esposa? Seja uma esposa dedicada, companheira, leal, amorosa e respeitosa até o fim. Mãe? Seja uma mãe dedicada na educação, na formação, na autonomia, no cuidado e no desenvolvimento saudável dos seus filhos até o fim; buscando o equilíbrio nas relações e promovendo um ambiente de diálogo e compreensão. Pai? Seja um pai presente, compreensivo, afetuoso e respeitoso; cumpra seu papel até o fim. Filho? Seja um filho grato, digno, respeitoso, afetuoso com seus pais, independente da sua idade; você recebeu cuidado, atenção, educação e alimentação, então prepare-se para retribuir cuidando deles, quando não puderem fazer por si mesmo. E, se seus pais não deram o que você precisava, não cuidaram como deveriam, enfim, não cumpriram seus papeis, não lhe cabe ser o juiz que os sentenciará à pena de pagar na mesma moeda. Seja filho até o fim. Chefe/líder? Seja um chefe digno, respeitoso, desempenhe seu papel com honra, responsabilidade e comprometimento com um ambiente de trabalho salutar. Cumpra seu papel até o fim. Colaborador? Seja um colaborador respeitoso, digno, pacificador e comprometido com a excelência dos resultados; cumpra seu papel até o fim. Enfim, qualquer que seja sua missão cumpra-a com zelo e comprometimento até o fim.
5. Transforme sua dor em algo produtivo (2Sm 21.11-12). Abanar os cadáveres de seus filhos foi a forma encontrada por aquela mulher para aplacar a sua dor, uma vez que nem ela nem eles foram responsáveis pela morte dos gibeonitas. Sua tragédia pessoal foi uma bandeira solitária contra o fim designado a seus filhos. Rispa alcançou resultados inimagináveis. Ainda hoje falamos sobre sua atitude. Podemos deixar de ser abençoados e abençoar alguém pelo simples fato de nos entregarmos à autocomiseração.
Isso nos leva a última, mas não menos importante lição:
6. Nossas atitudes não trazem consequências somente para nós. Como sempre digo: a vida é sua, mas as consequências são nossas! Quando alguém não cumpre o seu papel "até o fim", outros serão penalizados por isso. Saul, num ato insano de desobediência, feriu os gibeonitas, quebrando uma aliança feita desde a liderança de Josué. Os gibeonitas não queriam ouro e prata, e nem guerrear contra Israel, mas que fossem vingados pelo que Saul fez.
A morte dos filhos de Rispa não foi responsabilidade dela, e tampouco deles. Apesar disso, de alguma forma, ela atravessou aquele momento com um gesto solitário. Enxotar as aves e os animais era não se conformar com aquele trágico fim. Era, ao menos, desejar aos filhos uma despedida digna, um enterro descente da breve vida que tiveram. As palavras não ditas por aquela mulher ecoaram através de sua atitude e chegaram ao conhecimento do rei Davi (2Sm 21.11). Foi assim que o rei enterrou os ossos de Saul, Jônatas e de todos os outros que padeceram do mesmo fim que Armoni e Mefibosete, os filhos de Rispa. Sua atitude, antes solitária, se estendeu para além de sua própria dor e abençoou outras famílias que experimentaram a mesma angústia. O protesto solitário daquela mulher ecoou através dos muitos séculos e nos alcançou.
Talvez seja difícil acreditar que ainda exista algo a ser feito por alguém do nosso ciclo de relacionamentos, quando todos os recursos materiais se esgotaram. No entanto, deixemo-nos cativar pelo exemplo de Rispa, perseverante e determinada, aquela que cumpriu o seu papel de mãe até o fim. Não desanimemos. Sempre há algo a ser feito!
Apóstolo. Mestre e Doutor em Ciências da Religião Dr. Edson Cavalcante
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