DINÁ COMO VOCÊ NUNCA VIU
A história de Diná é muito triste. E ela tem tudo a ver com a opressão da mulher, uma chaga social presente no mundo desde o início da vida humana.
Infelizmente, um dos maiores focos de discriminação das mulheres é a própria família – velhos hábitos demoram a morrer… Para exemplificar o que acabei de dizer, basta pensar num típico almoço de domingo na casa de uma família brasileira. A família está toda reunida em torno da mesa. Pergunto: quem está na cozinha nesse momento? E depois, quem vai lavar a louça? Acredito que todos sabem a resposta: na esmagadora maioria dos casos, serão as mulheres. Os homens ficarão batendo papo, comendo e vendo televisão.
E um dos mais importantes aspectos da opressão da mulher dentro da própria família é a usurpação do direito dela a ter voz própria. E a história de Diná me parece ser um exemplo muito triste de como isso é feito.
A história de Diná
Vou dar aqui um resumo da história que está em Gênesis capítulo 34, versículos 1 a 29. Diná, filha de Jacó, saiu de casa sozinha para ver as “filhas da terra” – possivelmente outras moças da região onde morava. Foi um comportamento estranho, pois as mulheres virgens naquela época nunca saiam de casa sozinhas.
Ela foi vista por Siquem, um príncipe da cidade de mesmo nome. E ele aparentemente usou de força para ter relações sexuais com a jovem – a Bíblia usa a palavra “humilhar” para se referir ao que ele fez com Diná. Mas, depois do ato, Síquem tomou-se de amores pela moça e quis se casar com ela.
Hamor, pai do rapaz, foi até Jacó e prometeu um dote pela moça e, mais ainda, ofereceu aliança entre seu povo e a família de Jacó. Durante essa negociação, Diná foi mantida na casa de Hamor (versículo 26).
Simeão e Levi, irmãos de Diná, responderam que somente poderiam consentir no casamento se Siquem e todos os demais homens da sua cidade fossem circuncidados. Hamor concordou e assim foi feito.
Aproveitando-se do período de convalescença dos habitantes da cidade de Siquem, após a dolorosa cirurgia, Simeão e Levi mataram todos os homens e pilharam seus bens. Levaram Diná de volta para a casa de Jacó, onde ela terminou seus dias, de forma melancólica. Pois, não sendo mais virgem, não podia se casar com outro homem e quem queria se casar com ela, Siquem, tinha sido morto.
A interpretação tradicional dessa história apela para a sociologia dos clãs. A cultura daquela época se baseava no princípio da força – quem podia mais, chorava menos. Então, para ter alguma segurança, as pessoas passaram a se organizar em clãs. Dentro de um clã, todos os homens eram obrigados a defender e vingar as afrontas sofridas por qualquer membro do grupo. E ao fazerem parte de um clã, as pessoas se sentiam mais protegidas.
Portanto, atacar uma pessoa significava provocar a ira de todo o seu clã. A chave de tudo era a capacidade do clã de reagir às ofensas, já que não fazer isso demonstrava fraqueza, tornando a sobrevivência do clã ameaçada. Portanto, quando um clã tomava vingança por uma afronta, o objetivo não mais do que punir a ofensa em si, mas também demonstrar força para os inimigos.
A violência contra as mulheres do clã, como o estupro de uma virgem, era uma ofensa particularmente grave. E é nesse contexto que a história acima precisa ser analisada. A reação exagerada de Simeão e Levi teria servido como demonstração que o clã de Jacó não estava indefeso.
Mas, essa história admite uma leitura completamente diferente: tratou-se de um caso de amor proibido. O casal Diná e Siquem teria tentado “forçar a barra” para conseguir o consentimento da família da moça para seu casamento. E essa versão parece explicar bem melhor os fatos ocorridos.
Primeiro, a saída de Diná para ver as “filhas da terra”. Esse foi um ato de enorme imprudência de Diná e só faz sentido se ela fosse muito imprudente, coisa pouco provável numa mulher daquela época, ou se tivesse um objetivo secreto em mente: encontrar-se com Siquem e dar início ao processo que levaria ao seu casamento com ele.
Vale lembrar que nenhuma das palavras usadas no texto da Bíblia pode ser traduzida exatamente como “estupro”. A palavra usada – “humilhar” – refere-se a qualquer relação sexual ilícita, como a que houve entre os jovens, pois eles não eram casados. E isso não significa que tenha havido um estupro de fato.
O amor repentino de Siquem não faz muito sentido depois de um estupro, mas tem toda lógica na versão do amor proibido. Nessa segunda hipótese, Siquem já amava Diná em segredo e depois que a relação dos dois se tornou pública, ele demonstrou seus sentimentos e implorou ao pai que conseguisse a mão da moça em casamento.
O fato da moça ter sido mantida na casa de Siquem durante as negociações entre as famílias, também fala muito a favor da hipótese de um amor proibido. Se tivesse havido um estupor de fato, a tendencia de Diná teria sido correr de volta para a casa do pai.
A opressão da mulher
Existe um importante aspecto a ser considerado, que não costuma ser considerada nas análises tradicionais: a voz da própria Diná nunca foi ouvida. Em momento nenhum os irmãos a consultaram para saber qual seria sua vontade, muito menos pensaram no que teria sido melhor para ela.
Pelo contrário, quando mataram Siquem, eles tiraram de Diná qualquer possibilidade de reconstruir a vida e a condenaram a viver como morta-viva na casa paterna. Um horror.
E não podemos esquecer que o próprio Deus condenou a atitude dos irmãos de Diná e os puniu com a perda do direito de primogenitura (Gênesis capítulo 49, versículos 5 a 7).
É claro que a sociedade da Bíblia era muito mais machista do que a sociedade atual. Mas a opressão à qual Diná foi submetida continua a ocorrer, não pelas mesmas razões, é claro, e certamente não da mesma forma. Mas o problema continua presente.
O pior é que, nas filhas evangélicas, muitas vezes a própria Bíblia é usada como “instrumento” dessa opressão. São comuns as leituras distorcidas do texto bíblico que mostram a mulher, por exemplo, como fraca moralmente diante da tentação , fruto da ideia equivocada que Eva teria levado Adão a pecar.
Uma estratégia sutil, mas bem cruel, muito usada nesse processo de opressão é alegar que decisão sendo tomada pela família, contra a vontade da própria mulher, é para o “bem” dela. Alguns exemplos desse tipo de situação, que já presenciei, foram: o marido tem mais experiência do que a esposa e deve decidir, inclusive por ser o “cabeça do casal”; o pai deve resolver tudo para que a filha não precise esquentar a cabeça; ou mesmo a mãe viúva precisa ser tutelada pelos filhos para ser defendida dos perigos do mundo.
O pior é que, muitas vezes, as mulheres são as primeiras a dar apoio ao processo que as vitimiza. Isso porque se sentem inferiores – talvez por terem menos estudo) e/ou experiência – ou mesmo por terem sido educadas para deixar as grandes decisões para os homens.
Nós, cristãos, precisamos aprender a reconhecer essas situações e conseguir dizer não para elas. Lutar para que todos, homens e mulheres, sejam tratados da mesma forma e tenha seus seus direitos reconhecidos. Afinal, perante Deus, todas as pessoas são consideradas iguais e têm o mesmo valor.
Apóstolo. Capelão/Juiz. Mestre e Doutor em Ciências da Religião Dr. Edson Cavalcante
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