ENTRE A CRUZ E A DEPRESSÃO.
Afirmar que um personagem bíblico experimentou depressão seria anacronismo, pois o conceito contemporâneo de depressão não pertencia à época das Escrituras. Nesse sentido, é seguro afirmar que a Bíblia não fala sobre esse assunto. O que as Escrituras fazem, porém, é descrever a tristeza e angústia de alma humana por meio de vários outros termos, ou seja: abatimento (Sl 42.5, 6 e 11, 44.25 e 57.6), aflição (Sl 38.8 e 88.15), angústia (Is 61.3 e Jo 12.27), tristeza profunda (Mt 26.38) e muitas outras. Consequentemente, é possível extrair lições e princípios inspirados para a luta contra a depressão a partir da observação de como os personagens bíblicos lidaram com suas persistentes sensações de tristeza e perda de interesse pela vida, principalmente para os pastores que lutam contra esse mal.
Para um pastor, o combate à depressão pode ser uma das experiências mais duras da vida. Em certo sentido, o ministro foi chamado para ser um “colaborador da alegria” dos membros da igreja de Cristo (cf. 2Co 1.24 e Fp 1.25). Como ele pode fazer isso se sua tristeza é persistente? A situação fica mais séria ainda quando se observa que somente quando feito com alegria é que o trabalho dos líderes é proveitoso ao rebanho (cf. Hb 13.17). Todavia, o episódio de Jesus no Getsêmani é extremamente benéfico a esse respeito, pois descreve Jesus sofrendo angústia e abatimento de alma. O pastor que luta contra depressão pode extrair dali princípios seguros para sustentá-lo e ajudá-lo a dar o próximo passo, seguindo o exemplo do Redentor. Dessa forma, qualquer líder aflito pela dor da alma angustiada poderá confessar que, ainda que abatido, nunca será derrotado.
Mateus 26.37-38 afirma que, quando no Getsêmani, o Senhor foi “tomado de tristeza e angústia” e disse aos seus discípulos: “a minha alma está profundamente triste até a morte” (Mt 26.37-38). As atitudes de Jesus naqueles momentos de aflição apontam passos importantes na luta que qualquer cristão contemporâneo trava contra a depressão. Em um artigo devocional sobre esse texto, John Piper esboça, mas não desenvolve, alguns pontos dignos de serem observados na ação do Senhor Jesus.[1] Tomando as sugestões de Piper, procurei desenvolver melhor o assunto e passo a ressaltar cinco princípios encontrados diretamente no texto de Mateus e um sexto retirado de Hebreus.
Com relação ao texto de Mateus, devemos observar alguns detalhes importantes nesses dois versos. Cada um desse pode ser reafirmado pelos outros evangelistas.
1.Em sua angústia, Jesus escolheu alguns amigos próximos para estarem com ele. O texto bíblico afirma que Jesus, “levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a sentir-se tomado de tristeza e de angústia” (Mt 26.37). A iniciativa de Jesus em buscar a companhia dos seus amigos íntimos no momento em que enfrentaria sua tristeza de alma é claramente declarada por essas palavras. Ademais, é importante ressaltar que os amigos de Jesus eram crentes, seus discípulos, pois somente o cristão consegue interpretar o sofrimento humano à luz da cruz.
A dor e a enfermidade geralmente isolam o aflito de outras pessoas. Quando estamos enfermos não queremos estar perto de ninguém e muitos também não querem estar próximos a nós. Talvez por essa razão, em sua aflição, o profeta Elias tenha reclamado: “só eu fiquei” (1Re 19.10 e 14). No caso de Jó, a grande maioria dos seus parentes e amigos o desamparou em meio ao seu sofrimento (Jó 19.14). O salmista, em sua aflição, também se queixa: “Olha à minha direita e vê, pois não há quem me reconheça, nenhum lugar de refúgio, ninguém que por mim se interesse” (Sl 142.4). Em certo sentido, o leito do sofrimento se transforma em leito da solidão.
Em se tratando de sofrimento tão complexo como a depressão da alma, porém, a comunhão fraternal é instrumento divino para o coração ferido. Quando nossa perspectiva está turva e obscura, necessitamos ser guiados pelos olhos de quem nos ama e está enxergando melhor. Quando a única coisa que nosso coração nos diz é negativo e desesperador, carecemos daqueles que nos falam palavras de esperança. Amizades não são apenas preciosas (cf. Pv 17.17), mas necessárias nesses instantes. Jesus, mesmo sendo o Filho de Deus, não abriu mão desse benefício em seu momento de angústia.
2.Em sua dor, Jesus abriu o coração para os s amigos. Segundo o texto bíblico, logo após se sentir entristecido e angustiado, Jesus se voltou aos discípulos e disse: “A minha alma está profundamente triste até a morte” (Mt 26.38). Em outras palavras, ele não cultivou sua dor em segredo, mas abriu o seu coração acerca do seu estado de alma naquele exato momento.
Uma das dificuldades em ajudar aqueles que lutam contra a depressão ou abatimento é o fato de que eles dificilmente compartilham sua dor com outras pessoas ao redor. Em muitas ocasiões, é comum encontrar familiares de indivíduos angustiados que atestam ter percebido algo errado, mas que, ao perguntar o que estava acontecendo, o silêncio era a resposta mais comum. Por outro lado, algumas pessoas aflitas explicam que nunca compartilharam por não saber se poderiam confiar plenamente nas pessoas ao redor. Outros ainda afirmam que ninguém expressou verdadeiro interesse a ponto de justificar o difícil exercício de abrir o coração com outros.
Todavia, se considerarmos com quem Jesus se abriu, nenhum desses argumentos prevalece. Ele compartilhou sua angústia com discípulos que não demonstraram qualquer interesse pelo que estava acontecendo. Ao final, eles até dormiriam nos momentos de oração. Além do mais, um deles até iria negá-lo publicamente. Nada disso, porém, foi razão suficiente para impedir que o Redentor expressasse sua dor e angústia de alma com eles naquele momento.
Outro fator importante a ser notado é que Jesus não parece ter tido qualquer receio do que os discípulos pensariam a respeito dele. Sendo ele o Mestre e Senhor, poderia ter se preocupado com sua reputação. Ao invés disso, porém, apenas revelou sua dor aos seus discípulos. Há muitas pessoas sofrendo a dor do abatimento e que nada compartilham porque desejam “preservar sua imagem”. No caso do pastor, é comum que ele tente proteger sua imagem “pelo bem da igreja”. No entanto, se o Senhor da igreja não hesitou em compartilhar sua dor, tampouco seus “pastores designados” deveriam se preocupar com isso. Quando isso ocorre, além de se privarem de algo benéfico, esses irmãos acabam cultivando o elemento maléfico do orgulho. Ainda assim, é preciso notar que Jesus se abriu com amigos e não com qualquer um.
3. Em seu abatimento, Jesus pediu a intercessão e participação dos amigos em sua luta. Diferente do que algumas pessoas costumam fazer em momentos de tristeza, Jesus não quis apenas “falar sobre os seus problemas”. Ele também não quis apenas “colocar para fora o que sentia no peito”, nem “desabafar”. Jesus compartilhou sua dor e pediu aos discípulos que participassem com ele na luta em oração por causa de sua tristeza até à morte. Ele disse: “ficai aqui e vigiai comigo” (Mt 26.38).
A lição a ser aprendida a partir desse verso é que o compartilhamento da dor do aflito deve ser proposital. Dessa forma, ele tanto permite que outras pessoas ajudem, como também direciona quanto à natureza mais importante da ajuda a ser recebida nessas ocasiões. Os discípulos de Cristo foram convidados por ele a se aliarem a uma luta em prol de sua alma. Ao pedir por tal intercessão, a pessoa sofredora convida seus irmãos a participarem de um aspecto importantíssimo da vida cristã: a união do Corpo de Cristo em meio às tribulações da vida (cf. Rm 12.15 e 1Co 12.26).
Segundo Jesus, a forma correta de se travar a luta pela alegria da alma seria pela oração. Mais uma vez o leitor bíblico é lembrado da importância do cuidado e zelo espiritual por alguém que está sofrendo. Enquanto no geral raciocinamos em termos e categorias físicas e materiais, Jesus nos ensina a importância da luta pelo restabelecimento da alegria da alma através da intercessão.
4. Em sua aflição, Jesus derramou o coração diante do Pai em oração. Jesus não apenas pediu oração por si mesmo, mas ele mesmo derramou o seu coração diante do Pai dizendo: “Meu Pai, se possível, passa de mim este cálice!” (Mt 26.39). O clamor de Jesus, além de real, foi também pedagógico. Nele, o Senhor indica que, em última instância, nosso socorro vem somente do Senhor e, por isso, nossas petições devem ser direcionadas a ele. Deus possui a última palavra para todas as nossas dores e aflições. Como afirma o salmista: “Ele é quem perdoa todas as tuas iniquidades; quem sara todas as tuas enfermidades; quem da cova redime a tua vida e te coroa de graça e misericórdia” (Sl 103.3-4).
Também em sua oração, Jesus, como filho, se dirige a Deus chamando-o de “Pai” (o texto de Marcos usa o aramaico Aba, papaizinho, expressão de intimidade, cf. Mc 14.36). Isso ensina que, a despeito da angústia e dor que ele sentia, ainda mantinha a clara perspectiva da bondade paternal de Deus em perspectiva. A importância de se atentar para esse princípio é que, como indica outro salmista, nossa aflição muda nossa perspectiva sobre Deus (cf. Sl 77.10). Comumente, nos momentos de dor, confiamos mais em nossos sentidos e emoções do que nos fatos e afirmações da Palavra. Mas o exemplo de Jesus em oração deixa claro que Deus é bom e que, como filhos amados, podemos derramar o coração diante dele.
Por último, a atitude de Jesus deixa claro que não há qualquer assunto que não possamos trazer à presença do gracioso Pai que se interessa pela dor do nosso coração. Se observado cuidadosamente, o leitor notará que Jesus apresentou seu desejo ao Pai de que outra solução fosse encontrada para aquele momento que não o cálice da dor. Ainda assim, ele o fez em submissão, pois apenas disse “se possível”. Esse fato contrasta com o que geralmente ocorre quando lutamos contra a depressão, já que nossos sentimentos parecem “pregar para nós” que nossos problemas não são importantes para Deus ou que ele se faz indiferente para com nossa dor. Mas o exemplo de Cristo confirma a verdade de que podemos nos aproximar “com sincero coração, em plena certeza de fé,” do Pai celestial (cf. Hb 10.22).
5. Em seu sofrimento, Jesus descansou a alma na soberania e sabedoria de Deus. Após apresentar ao Pai o seu desejo, o Senhor conclui sua oração: “Todavia, não seja como eu quero, e sim como tu queres” (Mt 26.39). O que o leitor bíblico testemunha nas páginas seguintes é que Jesus continua obediente “até a morte e morte de cruz” (cf. Fp 2.8). Com exceção de um texto em Lucas que não aparece nos melhores e mais antigos manuscritos gregos existentes (cf. Lc 22.42-43), não há nenhuma outra indicação de que ele tenha sido miraculosamente confortado. Para piorar, por duas vezes Jesus se virou para os discípulos e os encontrou dormindo. No entanto, suas palavras ao Pai indicam que sua alma foi descansada na soberania e sabedoria do Altíssimo.
Certa vez li (embora nem me lembre mais onde) uma ilustração interessante sobre Charles H. Spurgeon, que lutou por anos contra sentimentos depressivos. Quando um membro da igreja, querendo consolá-lo, o encontrou e disse: “Pastor Spurgeon, que lamentável que Satanás o tenha afligido com tantas dores e aflições!”. Ao que Spurgeon respondeu: “Caro irmão, seria um tormento, uma verdadeira angústia insuportável, se eu acreditasse que qualquer um dos meus males viesse de Satanás sem a permissão do Soberano Deus!”. Naquele momento, o príncipe dos pregadores deixou claro que ele pregava para si mesmo a mensagem confortadora da soberania e sabedoria do Deus que por nós tudo executa!
Mas Deus não é apenas Soberano, ele também é Sábio! Isso significa que tudo o que ele realiza possui um propósito, sendo que o objetivo maior de Deus é conformar seus filhos à imagem de Cristo Jesus (cf. Rm 8.29). Essa conformação não ocorre somente nos privilégios das bênçãos, mas também nas bênçãos do sofrimento. O que é importante lembrar é que assim como o Filho não foi desamparado, nenhum dos filhinhos será. Essas verdades deveriam nos ajudar a descansar em Deus.
6. Em sua perplexidade, Jesus fixou os olhos no futuro glorioso reservado pelo Pai. Finalmente, outro verso das Escrituras que ensina como Jesus lidou com sua aflição e angústia de alma é o de Hebreus 12.2, que diz que: “Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus”. Isso mesmo, Jesus utilizou sua expectativa da glória que lhe seria revelada para suportar os sofrimentos da cruz.
Dessa maneira, o Senhor Jesus não focalizou apenas nas circunstâncias imediatas que o cercavam, sua mente não se ocupou em pensar apenas nos sofrimentos que experimentava. Ele ocupou sua meditação com as glórias que lhe seriam concedidas pela graça de Deus ao se assentar à destra do Pai. Certamente por essa razão, o escritor de Hebreus exorta a cada um dos seus leitores a “olhar firmemente” para Jesus, pois, pelo seu exemplo, também se pode aprender a lidar com os sofrimentos terrenos. Aqueles irmãos do passado certamente enfrentavam lutas desconhecidas a muitos de nós hoje, mas, somente considerando atentamente o modelo de Jesus, não desmaiaremos em nossas almas (cf. Hb 12.3).
De fato, a depressão é uma dor tão complexa que não se encontra tratamento ou medicina fácil para ela. Muitas pessoas, talvez por não compreenderem ou por desejarem uma “cura rápida”, acabam apresentando inúmeras “receitas” ou “lista do que deve ser feito ou evitado”. No entanto, nada melhor do que o modelo de como Jesus lutou contra o abatimento de sua alma para ajudar seus discípulos que no presente lutam contra a depressão. Até nessa esfera ele nos deixou exemplo para seguirmos os seus passos (cf. 1Pe 2.21). Todavia, devemos lembrar que Cristo não é apenas nosso modelo, mas nosso Redentor, aquele que sofreu e triunfou para que pudéssemos ter livre acesso ao Pai por meio dele. Em nossa angústia, podemos recorrer a ele, pois, naquilo que ele mesmo sofreu, é poderoso para socorrer os que são tentados (cf. Hb 2.18). Que o Senhor nos ajude na caminhada com Jesus em um mundo caído, mas aguardando o retorno do Supremo Pastor.
Apóstolo. Capelão/Juiz. Mestre e Doutor em Ciências da Religião Dr. Edson Cavalcante.
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