CURA E LIBERTAÇÃO
Sofrimento, abandono, doença, fome, violência, dependência de drogas, mortes são uma realidade nas notícias diárias. O avanço das ciências da saúde e da medicina, as políticas de prevenção de doenças somadas a projetos com recursos bem aplicados têm melhorado as condições de vida, o que é evidenciado com o aumento da longevidade e diminuição da taxa de mortalidade infantil.[1] Mas o problema do mal – incluindo as doenças e enfermidades – é mais complexo. Sua erradicação não depende somente de planos eficientes mais localizados: o mal em grande parte subsiste num sistema perverso de dominação que mantém os pobres reféns dos ricos e poderosos. É necessário converter também os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse na sociedade de hoje ]
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As consequências são as variadas formas de sofrimento do povo, que se pergunta: “O que fizemos de errado para merecer isso?” E quando não veem saída, é comum as pessoas assim se expressarem: “Só por Deus mesmo para sair dessa situação”. Na Bíblia, a história do Jó paciente reflete o conformismo nas palavras: “Recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males?” (Jó 2,10). Jó é figura de tantas vítimas de hoje, que não têm a quem recorrer. Muitos se refugiam na religião, esperando uma cura miraculosa, buscam Jesus milagreiro e exorcista. Outros buscam explicação da origem do mal num princípio negativo, que compete com as forças do bem. Com isso, a responsabilidade do mal é descarregada sobre demônios ou espíritos do mal. O povo sofredor é uma grande parcela da sociedade doente que clama por socorro, saúde, libertação. Cura e libertação são temas correlatos. Vamos refletir com base na história do povo na Bíblia. Será uma abordagem teológica da temática. Na Bíblia, aparece o projeto de Deus no esforço do povo de se organizar e assumir a vida comunitária na prática da justiça e misericórdia em favor do oprimido, do órfão, da viúva, do pobre, privados de condições dignas de vida.
Cura, libertação e salvação
Há uma relação estreita entre cura e libertação, salvação espiritual e saúde física. A salvação do ser humano em corpo e espírito abrange a existência na sua totalidade. O próprio termo latino “salus” significava originalmente saúde e salvação. Cristo é chamado o “Salvador”. E a doutrina da salvação é chamada “soteriologia”. Muito antes de Cristo,
Entendemos que a saúde é bem-estar físico, espiritual e social. Cura não se refere somente a libertação de doenças, mas a promoção da vida, do bem-estar da pessoa, na sua integridade de corpo e espírito. Diante do drama do sofrimento, não basta o conforto espiritual de uma vida futura no céu sem dor. É necessário lutar com os meios disponíveis, para promover a vida. No entanto, a cura é também proporcionar o bem-estar à pessoa mesmo na proximidade da morte. Nesse estado, a pessoa aceita com serenidade os limites da existência, os limites dos recursos da medicina, e sem drama se entrega nas mãos de Deus. Para a pessoa de fé, a experiência do sofrimento a conduz a um nível espiritual de aceitação de que a vida neste mundo é limitada. Como cristão, quem buscou viver na graça de Deus e na comunhão com Cristo também crê que morrer é estar com Cristo e participar da vida plena na ressurreição (cf. 1Ts 4,14; Cl 3,3-4; Fl 1,20-21). Nesse sentido, a cura é uma experiência de bem-estar espiritual diante da morte. Busca-se viver com qualidade de vida e também enfrentar com coragem e serenidade o momento derradeiro como coroamento da vida. Isso é também libertação.
Em relação à libertação, encontram-se na Bíblia principalmente os verbos: livrar, salvar, curar, resgatar, redimir, tirar de… A cura, em geral, é interpretada como ação libertadora de Deus. Ele traz a salvação. O próprio nome “Jesus” no Novo Testamento significa que ele salvará o seu povo dos seus pecados (Mt 1,21). Tomemos o conceito mais conhecido na teologia, o termo “redenção”. Ele se origina dos verbos hebraicos gahal e padah. O verbo gahal foi traduzido pela Bíblia Grega (Setenta) 90 vezes como “resgatar”, 45 vezes como “pôr em liberdade”, 41 vezes como “libertar” e também “salvar”. O verbo gahal nunca foi traduzido com o sentido de libertar com pagamento de resgate. Deus é o sujeito que resgata e salva gratuitamente. Ele tirou o povo do Egito por sua iniciativa. Deus se apresenta no livro do Êxodo como Senhor e Libertador: “Eu sou o Senhor teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20,2). A libertação é parte essencial do projeto de Deus. O povo passou por experiência de escravidão, doença, fome, derrotas. Muitas vezes faltaram com o compromisso assumido de seguir a lei de Deus, não fizeram a sua parte. Mesmo assim, o Senhor estava ao seu lado para exortar à fidelidade. O resultado da cura é o “Schalom”, termo que indica uma situação de paz, integridade, plenitude. No Novo Testamento, Jesus dedicou parte de sua vida ao cuidado da saúde. Seu programa era anunciar a boa notícia aos pobres, dar vista aos cegos, libertar os presos, devolver a audição aos surdos, curar os paralíticos, purificar os leprosos, ressuscitar mortos (cf. Mt 11,5; Lc 4,18-19; 7,21-22). Sua missão incluía também libertar as pessoas do domínio do diabo (cf. At 10,38). Enfim, a missão de Jesus era anunciar o ano da graça do Senhor (cf. Lc 4,18), os tempos sonhados pelo povo com o estabelecimento do reinado de Deus.
Relatos de cura no Antigo Testamento
No Antigo Testamento, a cura é sempre atribuída à intervenção de Deus, Senhor da vida e da morte. A doença era vista muitas vezes como castigo de Deus pelo pecado. No anúncio da libertação futura, a cura e a saúde seriam restituídas com a eliminação do pecado, causa dos males (cf. Is 33,24; Sl 40,5). No entanto, “a partir do exílio por influência babilônica, toma força a personificação de certos seres inimigos de Deus, e assim se difunde a crença de que anjos maus e demônios também eram causadores da dor, doença e morte” (CHAPA, “Exorcistas”, in AGUIRRE, 2009, p. 121). Na Bíblia, a cura dos males vem de Deus, considerado o médico supremo. Por esse motivo, o recurso aos médicos era visto quase como ofensa a Deus. O rei Asa é admoestado porque “nem mesmo na doença procurou o Senhor, recorrendo só aos médicos” (2Cr 16,12) (cf. VENDRAME, “Curas”, in Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saúde, 1999, p. 275). Na verdade, havia certos tabus que impediam o avanço da medicina. Por exemplo, a proibição de tocar em cadáveres impedia a autópsia e a descoberta das causas das doenças (Nm 5,2; 6,6; 19,11-16). A aversão pelo sangue derramado (Gn 9,3-4; Lv 19,26) impedia qualquer experimento em matéria de cirurgia. A lei da pureza legal marginalizava os doentes de pele, chamados leprosos (Lv 13-14)
Apóstolo. Capelão/Juiz. Mestre e Doutor em Ciências da Religião Dr. Edson Cavalcante.
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