LIBERDADE CRISTÃ
Rm 14.1-15.13
O apóstolo Paulo desfrutou com autoridade a liberdade cristã. Sua maturidade espiritual revela completa emancipação de inibições e tabus religiosos sem ferir nenhum princípio bíblico. Não sendo conivente com qualquer padrão antibíblico, Paulo se adaptava aos mais diversos ambientes com a finalidade de apresentar Cristo (1Co 9.22), porém, sabia que muitos cristãos não eram completamente emancipados como ele. Por isso, na carta aos Romanos, exigiu que os “fracos” fossem tratados com cuidado, paciência e sabedoria pelos mais “fortes”.
I. Os fracos e os fortes
Romanos 14.1-15.13 tem seu foco voltado para dois grupos da comunidade cristã em Roma, identificados por Paulo como “os fracos” e “os fortes”.
1. Os fracos
A palavra grega para “fraco” é astheneo que indica “fraqueza, indigência, impotência, falta de força por variados motivos”. No NT, a palavra foi usada cerca de quarenta vezes para designar doentes físicos. Dessa forma, não é exagero dizer que Paulo apontava para um tipo de “fé enferma”. Em paralelo com a ideia da liberdade cristã, John Stott afirma: “o que falta ao fraco não é força de vontade, mas liberdade de consciência” (A Mensagem de Romanos, p.429).
Quem eram os fracos? John Stott propõe quatro possibilidades.
a. Ex-idólatras. Eram recém-convertidos do paganismo; grupo semelhante ao mencionado por Paulo em 1Coríntios 8; indivíduos que mesmo resgatados da idolatria, por escrúpulo (hesitação da consciência), sentiam-se impedidos de comer carne que, antes de ser vendida em açougue local, era dedicada a ídolos.
b. Ascetas. Pessoas que exercitavam a disciplina do autocontrole do corpo considerando que isso era algo imprescindível para chegar a Deus. Havia ascetas presentes na igreja em Roma, o que explica por que se abstinham do vinho e da carne (Rm 14.21).
c. Legalistas. Consideravam as abstenções como boas obras necessárias para a salvação. Não entendiam a suficiência da fé em Cristo para a justificação do homem.
d. Cristãos judeus. A possibilidade mais satisfatória entre os estudiosos. Eram os que permaneciam com a consciência voltada para as regras do judaísmo, especialmente referente a dietas (comer apenas alimentos considerados limpos – Rm 14.14,20) e dias religiosos (guarda dos sábados e festivais judaicos).
2. Os fortes
A palavra grega para “forte” é dynatos, e significa “alma forte, capaz de suportar calamidades com coragem e paciência, firmes nas virtudes cristãs”. Indica um cristão maduro na fé e no trato com o próximo. Qualifica a pessoa de natureza contrária à dos fracos.
Romanos para hoje
O cenário da igreja de nossos dias revela certa similaridade com a igreja em Roma. Existem fracos e fortes na fé. Precisamos orar constantemente pedindo que Deus dê sabedoria aos líderes locais a fim de que saibam lidar com essas pessoas.
II. Sete princípios de liberdade cristã (Rm 14.1-23)
1. Nem todos possuem a mesma fé (Rm 14.1-2)
A Bíblia registra pelo menos quatro graus de fé: nenhuma fé (Mc 4.35-41), pequena fé (Mt 14.22-33), grande fé (Mt 15.21-28) e inigualável fé (Mt 8.5-15). Há pessoas que se encaixam nesses grupos, portanto, nem todas possuem a mesma fé. A unidade da igreja em Roma estava ameaçada porque os cristãos maduros conflitavam com os cristãos imaturos. Enquanto um grupo entendia bem a amplitude da liberdade cristã pela fé em Jesus, o outro estava com a consciência perturbada e não sabia exatamente o que fazer e o que não fazer.
Sabendo que os cristãos maduros entenderiam melhor esse conflito, Paulo direciona a eles dois conselhos práticos em relação aos mais imaturos:
a. “Acolhei ao que é débil [fraco] na fé”. Aceitem genuinamente e de boa vontade os imaturos na fé. Recebam-nos amorosamente em seu círculo de amigos íntimos.
b. “… não, porém, para discutir opiniões”. Não discutam assuntos controvertidos. Não entrem em conflitos de consciência pessoal.
2. O cristão não deve ser juiz de seu irmão (Rm 14.3-4,7-12)
Não foi a única vez que Paulo escreveu condenando formas de julgamento humano. Em 1Coríntios, ele diz: “A mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós ou por tribunal humano; nem eu tampouco julgo a mim mesmo… quem me julga é o Senhor. Portanto, nada julgueis antes do tempo, até que venha o Senhor” (1Co 4.3-5). O texto parece ecoar as palavras de Jesus: “Não julgueis, para que não sejais julgados” (Mt 7.1).
O apelo fundamental do apóstolo é que não devemos julgar irmãos que discordam de nós. O fraco deve ser aceito entre os cristãos como parte da igreja. Ao explicar esse apelo, Paulo mostra que a razão da aceitação mútua é que Deus aceitou os dois grupos (Rm 14.2-3). A questão não está entre crer ou não crer, mas entre ter ou não maturidade na fé. John MacArthur resume esse pensamento ao dizer: “O cristão forte come o que lhe agrada e agradece ao Senhor. O irmão fraco come de acordo com a sua dieta cerimonial e agradece ao Senhor por ele ter feito um sacrifício em seu favor. Em ambos os casos, o cristão agradece ao Senhor, assim a motivação é a mesma para o Senhor. Seja fraco ou forte, a motivação por trás das decisões de um cristão sobre os assuntos referentes à consciência deve ser agradar ao Senhor” (Bíblia de Estudo MacArthur, p.1519).
3. Cada pessoa tem as próprias convicções (Rm 14.5-6)
Se antes o apóstolo usou o alimento para exemplificar a liberdade cristã, agora ele reforça o ensino usando o exemplo da diferença entre dias: “um faz diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias” (Rm 14.5). O cristão judeu fraco na fé ainda se preocupava em guardar o sábado, e dias especiais associados à lei e aos costumes judaicos (Gl 4.8-10). O cristão gentio fraco na fé buscava completo distanciamento de qualquer dia ou festividade associada ao paganismo. Já o cristão maduro não era afetado por nenhuma dessas preocupações.
Na sequência, Paulo argumenta: “cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente” (Rm 14.5). “Paulo não está incentivando um comportamento irresponsável. Tampouco está se mostrando favorável a tradições irrefletidas. Mas, partindo do pressuposto de que cada um deles (o fraco e o forte) tenha refletido na questão e chegado a uma firme conclusão, ele os faz ver que a sua prática deve ser parte integrante do discipulado cristão. ‘Aquele que considera um dia como especial, assim o faz para o Senhor’ (Rm 14.6). Ou seja, ‘para honrar o Senhor’ (BLH), com a intenção de agradar a Ele e honrá-lo (‘para adorar ao Senhor’, NTV)” (A Mensagem aos Romanos, p.437).
4. O cristão não deve ser tropeço para ninguém (Rm 14.13,15-16,21)
Nesses versos, o apóstolo exorta o fraco a não criticar o forte, e chama a atenção do forte para deixar de apontar defeitos no fraco. Os dois grupos não deveriam colocar qualquer tipo de obstáculo para causar tropeço no caminho de seus irmãos. Paulo ensina que a liberdade cristã não pode ser usada para prejudicar o irmão.
É necessário aplicar o amor no exercício da liberdade. Por exemplo: o esposo tem direito e liberdade de dormir com a janela do quarto aberta, para passar a noite sentindo a brisa da madrugada. Mas se isso importuna a esposa ou lhe faz mal, ele deve abrir mão do privilégio em benefício do conforto e da segurança dela. Nem uma de nossas ações pessoais vale mais do que o bem-estar do povo de Deus. Dessa forma, devemos procurar o que realmente contribui para a edificação dos irmãos em vez de permanecer obstinados em nossos direitos.
5. Que é o reino de Deus? (Rm 14.17-20)
“Se a primeira verdade teológica que suporta o apelo de Paulo para que os fortes se controlem é a cruz de Cristo, a segunda é o reino de Deus, isto é, o domínio gracioso de Deus através de Cristo e pelo Espírito na vida do seu povo, proporcionando-lhes uma livre salvação e exigindo uma obediência radical” (A Mensagem aos Romanos, p.443).
Assim, vamos contribuir para a paz e a edificação mútua. A igreja não deve ser edificada isoladamente, mas sua construção precisa acontecer em conjunto. Igreja é um edifício espiritual que necessita ser bem planejado, em que cada um tenha seu lugar e desenvolva seu dom (Ef 4; 1Co 12). Não podemos permitir que questões pessoais afetem a obra de Deus. Algo que é bom para nós pode ser um obstáculo aos outros. O reino de Deus exige unidade.
6. A pureza ou a impureza estão na consciência (Rm 14.14,22)
Paulo não está levando em consideração o padrão absoluto de Deus em relação à postura do crente. Nesse caso, a consciência não seria levada em conta, e sim a própria conduta. No texto, o apóstolo deixa claro que o fazer, por si só, e o não fazer é a mesma coisa perante Deus. O apóstolo tinha convicção de que todas as coisas foram criadas por Deus, e tudo que foi criado é bom. Assim, os alimentos e as bebidas que estão sendo discutidos na igreja de Roma são bons porque foi Deus quem os fez. No entanto, nem todos interpretavam a questão, ou ainda o fazem, sob essa perspectiva. Para a pessoa que considera algum alimento ou bebida algo impuro, sua consciência aponta um pecado do qual não quer participar, por isso Paulo diz que ela não deve comer ou beber tal coisa.
Devemos ter certeza de que nossa consciência está limpa diante de Deus. Também precisamos lembrar que não podemos fazer nada que cause a queda de um irmão. Nesse caso, o que é bom para nós pode levar outros ao pecado. Então, o nosso bem se torna mal para ele (1Co 8.10-11). Tal alternativa motivou Paulo a concluir que não devemos fazer nada que sirva de tropeço ao nosso irmão (Rm 14.21; 1Co 8.13).
7. A fé é algo pessoal (Rm 14.23)
O apóstolo conclui o capítulo 14 fazendo distinção entre crer e agir, entre falar uma coisa e fazer outra. Warren Wiersbe, citado por Hernandes D. Lopes, diz que “nenhum cristão pode ‘tomar emprestadas’ as convicções de outro para ter uma vida cristã honesta” (Romanos – o evangelho segundo Paulo, p.457). O crente que não tem certeza de que está fazendo a coisa certa, mas o faz, se condena em seu ato. Isso porque sua ação não está em harmonia com sua convicção interior, ou seja, com sua fé. Tudo o que não é feito em harmonia com a convicção de que está de acordo com a Bíblia é pecado, embora, por si só, possa ser uma ação correta.
Romanos para hoje
Ao mesmo tempo em que a igreja é uma unidade, ela também se reveste da diversidade. Isso implica necessidade de relacionamento maduro entre pessoas com ideias e convicções distintas. Como você tem tratado o irmão fraco da sua igreja? Como tem se relacionado com o irmão mais forte de sua igreja?
III. Cristo é o supremo exemplo de respeito ao próximo (Rm 15.1-13)
1. Cristo não agradou a Si mesmo (Rm 15.3-4)
Cristo não Se entregou para ser crucificado com a finalidade de agradar a Si mesmo, mas de agradar ao Pai. Submeteu-Se à vontade de Deus suportando toda humilhação e dor na cruz em favor dos homens (Sl 69.9). “É como dizer que, para simbolizar sua recusa de agradar a si mesmo, Cristo identificou-se tão completamente com o nome, a vontade, a causa e a glória do Pai que os insultos que seriam dirigidos a Deus caíram sobre ele” (A Mensagem aos Romanos, p.449). Se Cristo é o exemplo, a Bíblia é o manual. Precisamos viver segundo o exemplo de Jesus, buscando conhecimento nas Escrituras.
2. Cristo acolheu também os gentios (Rm 15.7-12)
As diferenças entre irmãos são resolvidas quando agimos como Cristo, ou seja, não agradando a nós mesmos, mas acolhendo o próximo. “Paulo dá uma ordem, apresenta um modelo e estabelece uma motivação: devemos acolher uns aos outros, da mesma forma que Cristo nos acolheu, fazendo isso para glória de Deus. Se o exemplo de Cristo é nosso modelo, a glória de Deus é a nossa motivação” (Romanos – o evangelho segundo Paulo, p.460).
3. Suportem os fracos e vivam em paz (Rm 15.1-2,5-6,13)
Paulo impõe mais uma obrigação sobre os fortes em relação aos fracos, incluindo ele, Paulo, como um forte. O apóstolo exorta os fortes a participarem das lutas dos fracos; viver a experiência de identificação com o sofrimento do irmão (Gl 6.2; 1Ts 5.14). Suportar e carregar os fardos de nossos irmãos é produto de uma profunda intimidade com Cristo, que fez o mesmo em nosso favor (Mt 11.28-30). Dessa forma, Deus nos encherá de gozo e paz, assim seremos “ricos de esperança no poder do Espírto Santo” (Rm 15.13).
Romanos para hoje
“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus” (Fp 2.5).
Conclusão
Concluímos citando mais uma vez John Stott: “Quando se trata de questões fundamentais, portanto, a fé é primordial, e ninguém pode apelar para o amor como uma desculpa para negar a essência da fé. Quanto às questões fundamentais, contudo, o amor é que é primordial, e não se pode apelar para o zelo pela fé como uma desculpa para fracassar no amor. A fé instrui a nossa própria consciência; o amor limita o exercício dessa liberdade” (A Mensagem aos Romanos, p. 454).
Apóstolo. Capelão/Juiz. Mestre e Doutor em Ciências da Religião Dr. Edson Cavalcante
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