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quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

TEOLOGIA AOS GÁLATAS


                                                     TEOLOGIA AOS GÁLATAS

Mais do que qualquer outro livro do Novo Testamento, incluindo talvez até mesmo Romanos, a carta de Paulo aos Gálatas tem sido a fonte de ensino teológico para a igreja no meio de suas mais profundas crises. Já no contexto original da carta, a heresia judaizante ameaçava minar o trabalho do evangelho entre as igrejas dos gentios, e, assim, destruir a unidade do povo de Deus. No segundo século, ao passo que a igreja cristã lutava contra a heresia de Marcião, Gálatas desempenhou um papel central na controvérsia. Muito mais tarde, na época da Reforma no século XVI, os líderes protestantes identificaram nesta carta a chave para os problemas de fundo teológico que enfrentavam. Então, o que é o ensinamento da carta de Paulo aos Gálatas? Se quisermos responder a essa pergunta com precisão, não devemos dissociar a teologia da carta do contexto histórico em que foi escrita. Todas as cartas de Paulo foram escritas para lidar com problemas específicos, mas no caso de Gálatas, a situação era particularmente urgente. A crise era tão grande que Paulo começa a carta, não com o tipo de agradecimento que ele normalmente utilizava, mas com uma expressão de espanto, de que as igrejas da Galácia estavam sendo persuadidas por alguns professores a seguir um falso evangelho (1:6). Estes professores argumentavam que os cristãos gentios, se quisessem compartilhar a bênção de Abraão, deviam ser circuncidados e submeter-se a Lei do Antigo Testamento. Pelo fato de que esta exigência contrariava a mensagem que Paulo pregou, os falsos mestres também alegavam que Paulo não tinha autoridade adequada. Tradicionalmente, os intérpretes têm dividido a carta em três seções. A primeira seção (caps. 1-2), em que Paulo defende sua autoridade, é de caráter histórico, a segunda é teológica (cap. 3-4), e os dois últimos capítulos são práticos, ou exortatórios. Embora esta divisão seja útil, pode dar a impressão errada, como se os capítulos 1-2 e 5-6 não fossem teológicos (ou como se os quatro primeiros capítulos não fossem práticos!). Na verdade, esta epístola é fortemente teológica do começo ao fim. Já na saudação, que é maior do que a habitual, Paulo aborda as questões importantes, como a origem divina do seu apostolado e o caráter redentor da obra de Cristo. O restante dos capítulos 1 e 2, é verdade, está escrito na forma de uma narrativa, mas mesmo esta seção é fundamentalmente a “verdade do evangelho” (2:5): o motivo de Paulo ter que defender seu apostolado é que a integridade da mensagem cristã estava em jogo. Além disso, a orientação prática, ou ética, dos capítulos 5-6 não pode ser dissociada das questões teológicas em vista. No passado, os estudiosos tinham a tendência de ver as exortações de Paulo nesta carta como mais ou menos “anexadas”, mas estudos recentes têm demonstrado que tal perspectiva é inadequada.

A tese dos capítulos 1-2 - mas de um modo geral também da carta como um todo - é indicada em 1:11-12: A mensagem que os Gálatas ouviram de Paulo tinha uma origem divina, não humana. Este ponto é estabelecido muito enfaticamente nos versos 15-16. Assim como Deus escolheu Jeremias antes mesmo de seu nascimento (Jr 1:5) para o ministério, assim também Paulo e a sua mensagem eram o resultado de iniciativa da Divina graça. Nenhuma experiência paulina pré-cristã (vv. 13-14), nem seus primeiros anos como cristão (vv. 17-24) podem explicar a origem do seu evangelho. Além disso, não era verdade, como seus adversários provavelmente alegavam, que a integridade de sua pregação tinha sido comprometida em duas ocasiões específicas de sua consulta com os líderes da igreja de Jerusalém (2:1-10) e seu confronto com Pedro em Antioquia (2:11-14). Este último incidente é de especial importância, porque leva Paulo a tratar da questão teológica de uma forma muito explícita (2:15-21). No momento em que Pedro decidiu parar de ter refeição em comunhão com os cristãos gentios, ele estava, de fato, sugerindo que eles não poderiam ser plenamente aceitos no povo de Deus, sem primeiro se tornar judeus. Mas tal visão estava em contradição com a fé que o próprio Pedro proclamou. Quando Pedro depositou sua fé em Cristo, ele estava reconhecendo que mesmo os judeus (que não eram considerados “pecadores” da mesma maneira que os gentios eram) não podiam esperar ser justificados, cumprindo as exigências da Lei Mosaica. Em outras palavras, ao procurar a salvação em Cristo, Pedro devia reconhecer que ele era um pecador necessitado assim como os gentios eram. Portanto, era necessário romper as barreiras das cerimônias judaicas e comer com os gentios. Mas agora, com medo do que podiam pensar alguns judeus, Pedro decidiu voltar à sua conduta anterior e rigorosa judaica (2:12). Ao interromper a refeição de comunhão com os gentios, Paulo acusou Pedro de está construindo o que ele já tinha derrubado, e que isso fazia dele um transgressor da lei (2:18, Paulo diz “eu” talvez para ser educado, mas Pedro está claramente em vista). Como Paulo pode fazer tal afirmação? Porque a própria lei, diz ele, leva as pessoas a morrer com a Lei (2:19) – uma afirmação notável e poderosa que ele desenvolve em 3:19-24. Essa morte, no entanto, resultou na vida real por meio de Jesus Cristo. A declaração de conclusão (2:21) revela a verdadeira motivação de Paulo: se nossas ações indicam que a justificação pode ser alcançado pela observância da Lei, então a morte de Cristo deve ter sido desnecessária e a doutrina da graça é subvertida. Nós temos uma nova visão da natureza do problema dos gálatas nos primeiros versículos do capítulo 3. Paulo descreve a mudança de comportamento existente entre os cristãos da Galácia, sugerindo que, apesar de terem começado no poder do Espírito, estão procurando agora completar a sua salvação por meio da carne. Esse contraste entre o espírito e a carne é muito importante para Paulo, especialmente nesta carta. A palavra “carne” é apropriado porque os judaizantes davam ênfase a “circuncisão” (6:12-13), mas também sugere a fraqueza da natureza humana e, portanto, a nossa incapacidade de agradar a Deus (cf. Rm 8:7). No final do capítulo 4, Paulo usa os mesmos dois termos para contrastar o nascimento de Ismael (por habilidades humanas naturais) com a de Isaque (pelo poder sobrenatural do Espírito, em cumprimento da promessa). Assim, o termo “carne” torna-se genericamente a palavra para descrever o caráter do presente mundo mau (uma frase usada em 1:4), isto é, tudo o que é oposto ao mundo vindouro, que por sua vez é representado pelo Espírito.

O mundo do Espírito, porém, é um mundo de fé, não de obras da lei. Se os Gálatas realmente quisessem participar da herança de Abraão, se eles realmente quisessem ser considerados como filhos de Abraão, eles deviam viver pela fé como Abraão (3:6-7, 29). Talvez os judaizantes alegassem que Paulo criou uma contradição entre a promessa abraâmica e a Lei Mosaica. Na verdade, diz o apóstolo, são os judaizantes que se opõem a estes dois princípios. Quando Deus deu a Lei quatro séculos depois de Abraão, Ele não poderia ter tido a intenção de que a Lei viesse a alterar a promessa. Mas se os Judaizantes estavam certos, ou seja, se a herança poderia ser recebida pelas obras da Lei, então a lei seria contra a promessa, que só pode ser conquistada pela fé (3:12-21). Não, a verdadeira finalidade da lei era temporária: devia funcionar como um tutor ou carcereiro, condenando o pecado dos israelitas, e assim preparar o caminho para Cristo. Uma vez que Cristo veio, a nova Era de fé tornava desnecessário o tutor. É a união com Cristo pela fé que nos faz não apenas filhos de Abraão, mas também filhos de Deus. Tudo isso significa que, na medida em que a nossa posição com Deus está envolvida, não existem diferenças entre os filhos de Deus: todos nós somos um em Cristo (3:22-28; 4:4-7). No decorrer de sua argumentação, Paulo estabelece uma nítida distinção entre dois modos de existência, representadas por vários conceitos. Refletir sobre esses contrastes fornece perspicácia significativa na teologia de Paulo. 

Carne x Espírito 
Obras da lei x Fé 
Promessa de bênção x Maldição 
Herança da Liberdade x Escravidão, 
Pecado x Justificação
Morte x Vida 
Escrava Hagar x a mulher livre [Sara] 
Jerusalém terrena x a Jerusalém celestial 
Ismael x Isaque 
Perseguidor x Perseguido 
Lançado fora x Ser herdeiro
Debaixo da Lei x Ser conduzido pelo Espírito
Obras da Lei x Frutos do Espírito

Os dois últimos conjuntos de itens aparecem na seção exortatória, particularmente em 5:13-26. Como já foi sugerido, as preocupações práticas da epístola são tecidas em sua mensagem teológica. A preocupação de Paulo com o comportamento dos cristãos gálatas, isto é, não deve ser vista como uma questão ética, mais ou menos relacionada com o conflito doutrinal que eles estavam enfrentando. Pode ser que a ênfase em se manter a Lei, que incidia sobre as regulamentações da parte cerimonial, ironicamente os fez insensíveis aos graves problemas morais. Ou talvez eles estivessem simplesmente confusos sobre as diretrizes para a conduta piedosa adequada e os meios de santificação. Sejam quais forem as circunstâncias precisas para o problema dos Gálatas, a resposta de Paulo sugere que a lei, de fato, representa com precisão a vontade de Deus para eles (5:14), no entanto, Lei não dá nenhum poder para cumprir a vontade divina (como sugerido por 5:18, cf. 3:21 e Rom 8:3; noutras Paulo ressalta que a lei realmente é cúmplice do pecado, Rm 7:7-13; 1 Col 15:56). A única maneira de conquistar os impulsos da carne está em “andar” no Espírito, em ser conduzido pelo Espírito, nos frutos do Espírito, em “manter o passo” com o Espírito (5:16, 18, 22, 25). Essa ênfase no poder do Espírito para a santificação levanta a possibilidade de volta em 3:3 Paulo já estava pensando sobre a conduta ética dos Gálatas. Sua vida moral, tanto quanto a sua submissão a regras cerimoniais, indicavam um lapso sério na sua relação com Deus. O centro nesta discussão é 5:6, uma das demonstrações mais importantes em todas as cartas de Paulo: “Porque em Cristo Jesus nem circuncisão nem incircuncisão tem qualquer valor. A única coisa que conta é a fé que se expressa através do amor.” A frase “se expressa” traduz o verbo grego energeo, “trabalhar, ser eficiente.” É evidente que tendo a fé em oposição às obras da lei, o apóstolo não a vê como uma ideia passiva. Pelo contrário, a verdadeira fé está operando [trabalhando. N do T] através do amor. A comparação entre este versículo com 6:15 e 1 Coríntios 7:19 sugere que, na teologia de Paulo, o princípio de uma fé operante corresponde ao conceito de uma “nova criação” e na responsabilidade de “cumprir os mandamentos de Deus”. Porque a liderança do Espírito produz uma conduta que a Lei não condena (5:23), por implicação, aqueles que vivem pelo Espírito são os que realmente cumprem a Lei (ver também 6:2; e Rm 8:4) . Para alguns estudiosos, tal ênfase nesta parte de Gálatas não é coerente com as declarações negativas de Paulo sobre a Lei nas seções anteriores da carta. O que precisa ser reconhecido, porém, é que a discussão no capítulo 3 não se destina a fornecer uma descrição detalhada sobre a “teologia paulina da Lei” (vários aspectos da teologia que não são abrangidos em geral em Gálatas, mas se apresentam em algumas das outras cartas). A controvérsia que motivou Paulo a escrever aos Gálatas centrou-se especificamente sobre a relação entre a Lei e a Justificação. Quando Paulo afirma que o crente é justificado sem a Lei, ele nunca sugere que estamos, portanto, livres para violar essa Lei. De fato, o Evangelho confirma a Lei (cf. Gl 3:21; com Rm 3:31).

Uma questão adicional foi levantada por estudos recentes. Durante a segunda metade do século XX, os pesquisadores ganharam um novo entendimento das qualidades positivas na teologia judaica, no tempo do Novo Testamento. É evidente, por exemplo, que o ensino rabínico muito apreciava a ênfase bíblica sobre a graça divina e que os fariseus não tinham necessariamente uma visão grosseira de “obras de justiça”. Com base nisso, alguns teólogos têm argumentado que a teologia protestante foi mal orientada pela experiência própria da conversão de Lutero. A doutrina medieval do mérito humano, dizem, foi lida no judaísmo antigo e afetou a nossa interpretação de Paulo. De acordo com esta nova abordagem, Paulo realmente não se opôs aos conceitos de fé e da obediência a Lei. O que ele argumentou com os Gálatas e em outras partes, era a tendência de tomar as marcas distintivas do judaísmo (circuncisão, as leis alimentares, etc) e usá-las para excluir os gentios dos propósitos de Deus. Indubitavelmente, a questão judaico-gentílica era a questão fundamental que enfrentavam logo cedo no cristianismo, e pode muito bem ser que os reformadores do século XVI, não fossem suficientemente apreciadores desse fator, como eles procuraram interpretar Gálatas. Por outro lado, seria um grave erro supor que as ideias da Reforma Protestante fossem incompatíveis com o reconhecimento de tal fator. Dizer que Paulo estava preocupado com o orgulho nacionalista, e não com a auto-retidão pessoal, é cair em uma falsa dicotomia (como Fil 3:3-9; claramente indica). Os judaizantes que estavam incomodando as igrejas gálatas realmente focavam na identidade étnico-religiosa judaica como meio de desfrutar das bênçãos divinas. Mas, porque tal identidade é algo que pode ser alcançada por esforço pessoal (a “carne”), a tentativa de ganhar a retidão, não reflete a confiança em Deus (fé), mas a confiança em nossa própria justiça. 

Hoje, não menos do que no primeiro século, a carta de Paulo aos Gálatas lembra os crentes sobre a inseparabilidade da Teologia da vida. Por estabelecer em termos mais claros o que é “a verdade do evangelho”, o apóstolo foi capaz, sob a direção divina, de preservar a gloriosa doutrina da salvação pela graça.

Apóstolo. Capelão/Juiz. Mestre e Doutor em Ciências da Religião Dr. Edson Cavalcante

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