SALMO
51...
O Salmo 51, um dos sete salmos penitenciais (6, 32, 38, 51, 102,
130, 143) – provavelmente o mais famoso deles –, é um exemplo ideal do que
significa “mudança de atitude”. Seu escritor, o rei Davi, sofre uma grande
transformação que merece ser observada com atenção. A mudança pode ser
percebida não apenas no corpo do texto, mas no contexto indicado pelo título do
salmo: “Ao dirigente: Cântico de Davi, em vindo a ele Natã, o profeta, depois
de ter [Davi] se deitado com Bate-Seba” a 2Samuel 11 e 12, onde são narradas as
atitudes de Davi como pecados singulares em sua vida. Esses capítulos mostram
uma sequência drástica de pecados cada vez piores que começam com a cobiça da
mulher de um amigo, seguido pelo adultério ao tomá-la em seu leito.
O que já era trágico, piora com a notícia de que a mulher,
Bate-Seba, ficou grávida. Davi, então, chama Urias, o marido, do campo de
batalha e tenta fazê-lo ir para sua casa a fim de parecer que era dele o filho que
a mulher esperava. Urias não atendeu à sugestão do rei que, em uma nova
tentativa, o embriagou a fim de convencê-lo. A falta de sucesso fez Davi lançar
mão de uma opção extrema, pela qual, deliberadamente, causou a morte do marido
traído. Com sua morte, Davi desposou a mulher gestante e acreditou que tudo
permaneceria em segredo. A farsa só teve fim quando o profeta Natã, usando de
um estratagema, fez o rei pronunciar uma condenação sobre si mesmo e o
repreendeu duramente pelo pecado.
Em outras ocasiões narradas nas Escrituras, como em 1Samuel
15.10-31, repreender um pecado do rei promoveu reações raivosas do monarca.
Mas, com Davi, o resultado foi bem diferente. Houve “mudança de atitude” por
parte do rei pecador. Isso torna o episódio – e esse salmo – um material
importante a fim de aprendermos sobre o arrependimento e o perdão de pecados. O
Salmo 51, nesse sentido, nos mostra cinco implicações do pecado na vida do
homem que quebranta seu coração diante de Deus.
A primeira implicação é a consciência da condição pecadora do
homem. Davi, logo após ser admoestado por Natã, fez o que cabe a todo homem que
busca o Senhor ao se ver em pecado: reconhecer seu erro em lugar de
racionalizar a situação ou inventar desculpas para fingir que não pecou. Davi
diz (v.4): “Contra ti, contra ti somente, eu pequei e fiz o que é mal aos teus
olhos). Ao dizer que pecou somente contra Deus, a ideia não é sugerir que não
pecou contra Bate-Seba ou, pior, contra Urias. A intenção é mostrar que seus
atos de pecado feriram, primeiro, o seu relacionamento com Deus. O pecado é
pecado porque Deus é santo e contrário ao mal. Isso, obviamente, desarma
qualquer pessoa que peque contra outrem ou que mantenha mágoas dos irmãos, que,
ao mesmo tempo, queira afirmar que mantém sua comunhão com Deus.
Davi desiste de se defender desse modo falso porque, ao ser
acusado de pecado, ele se lembra que sua pecaminosidade não pode ser negada,
visto que a tem desde o nascimento (v.5): “Eis que eu nasci com iniquidade e
minha mãe me concebeu com pecado.” Tal afirmação levanta a questão da
transmissão do pecado. Segundo afirma o salmista, o pecado não está presente no
homem apenas quando, conscientemente, ele realiza um ato de pecado, como diz a
linha doutrinária conhecida pelo termo “pelagianismo”. Segundo diz o texto,
desde a concepção, o pecado já está presente nos seres humanos. Essa realidade
se perfaz desde os nascimentos dos filhos do primeiro casal e, a partir de
então, aos filhos de todos os casais, visto que todos são pecadores e ninguém
há sem iniquidade (Rm 3.10-12; 5.12). Enquanto as Escrituras dizem que Adão e
Eva foram feitos “à imagem de Deus” (Gn 5.1,2), seu pecado provocou uma
transformação tão profunda em sua natureza que seus filhos, a partir de então,
não nasceram à imagem de Deus, mas à imagem de Adão, homem pecador que era (Gn
5.3).
A segunda implicação é a necessidade do perdão e da restauração.
Vendo sua condição pecaminosa, o homem olha para seus atos de pecados e não os
acha naturais, mas transgressões que ofendem o santo Deus. Por isso, busca o
perdão divino e uma mudança que o faça, novamente, ter comunhão plena com o
Senhor. A exemplo de Davi, ele roga (vv.1,2): “Apaga as minhas culpas, lava-me
completamente da minha iniquidade e purifica-me do meu pecado”.
A terceira implicação é o sofrimento como consequência do
pecado. Para o servo de Deus o pecado é fonte de dor por dois motivos. O
primeiro é porque ele causa consequências que fazem sofrer (Tg 1.15). O
segundo, porque o pecador perde seu contato próximo com o Senhor, o qual não suporta
o pecado e não fica alheio a ele (Is 59.1,2). No caso de Davi, por ocasião do
pecado com Bate-Seba e a triste sequência de pecados que resultou na morte de
Urias, o sofrimento não foi diferente, mesmo antes de ser Davi repreendido pelo
profeta Natã. Podemos notar essa realidade pelo modo como Davi diz se sentir
antes de confessar sua maldade (v.8): “Faze-me ouvir regozijo e alegria e,
assim, se alegrarão os ossos que tu trituraste”. Davi não teve fraturas
múltiplas. Ao dizer que teve seus ossos triturados ou moídos, ele se refere ao
sofrimento que sentia por ter pecado. A tristeza pelo pecado era tanta que lhe
parecia que seus ossos estavam esmigalhados. Por isso o pedido pela restauração
da alegria. O fato é que o pecado causa sofrimento a quem quer seguir a Deus.
A quarta é a certeza de restauração para quem se arrepende.
Apesar de conhecer seu pecado (v.3), Davi sabia que, com o coração contrito,
podia recorrer a Deus a fim de ser perdoado e restaurado. Ele conhecia o
caráter transformador do Deus a quem servia. Assim, demonstra confiança em sua
oração quando pede que Deus lhe execute uma mudança profunda (vv.10,12): “Cria
em mim um coração puro, ó Deus, e renova no meu íntimo um espírito estável...
Recobra em mim a alegria da tua salvação e mantém em mim um espírito
enobrecido”. Com os benefícios das respostas da oração que dirige a Deus, o
salmista não apenas é perdoado, mas volta à ativa como um servo útil na obra de
Deus.
A última implicação é a possibilidade de adorar ao Deus
perdoador. Ninguém deve buscar o pecado para, perdoado pelo Senhor, mostrar a
todos a graça de Deus que supera a maldade do servo (Rm 6.1,2). Entretanto, o
fato de sermos perdoados deve, sim, ser motivo tanto de louvor a Deus como de
testemunho público do amor do Senhor pelos que lhe pertencem. É por isso que
Davi, mesmo sabendo do seu pecado e da necessidade que tinha de perdão e
restauração que só podiam vir de Deus, se antecipa e anuncia o que fará (v.13):
“Eu ensinarei aos rebeldes os teus caminhos e os pecadores se voltarão para
ti.” O efeito de tal anúncio parece encontrar seu par na vida dos israelitas de
aí por diante (vv.18,19).
Apesar da antiguidade do salmo, sua atualidade e utilidade não
podem ser de modo algum, desprezadas. O pecado, tanto no mundo antigo como no moderno,
quebra a comunhão do servo com seu Deus e causa sofrimento ao que peca e a quem
é alvo do ato do pecado. Temos de, como igreja de Deus, recorrer sempre à
promessa de perdão e de purificação por meio da obra redentora do Senhor Jesus
Cristo (1Jo 1.9). Ninguém sabe tão bem o valor de tal promessa como aquele que
quer ser fiel a Deus. De coração ele busca o perdão, já que (v.17) “sacrifícios
a Deus são o espírito quebrantado; Deus não despreza um coração quebrantado e
abatido”.
Apóstolo. Capelão/Juiz. Mestre e Doutor em Ciência da Religião
Dr. Edson Cavalcante
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.