AOS GÁLATAS...
Muito se discutiu através dos estudos da epístola de Gálatas sobre quem
a escreveu. Mas após análises profundas chegou-se a conclusão de que é
realmente Paulo e não um pseudônimo quem escreveu o livro. Um dos fortes
indícios é o estilo literário latente no livro. Quanto a Paulo, a própria
epístola destaca sobre a pessoa de Paulo. Sabe-se que Paulo não era uma pessoa
rasa na sua vida pré-cristã. Este era judeu e ele próprio sabia que era mais
"avantajado" que os demais contemporâneos. Contudo sua modéstia o refreou
(1.14). Paulo não escreve para desconhecidos. Muitos gálatas o conhecia em sua
época pré-cristã (1.13). Paulo descreve detalhadamente sua conversão além de se
declarar pregador (1.15-16) de um Evangelho que não era de feitura humana
(1.11). Este recebeu o Evangelho mediante revelação (1.12). Paulo deixa claro
que: Pregou o Evangelho em suma consciência (2.2); anunciou o Cristo
crucificado (3.1) e que demonstrou ter enfermidades na sua primeira pregação
entre os gálatas (4.13).
Quanto à sua peregrinação missionária Paulo passou um tempo na Arábia e
relata sua volta a Damasco (1.17). Esteve em Jerusalém (1.18 e 2.1) mas não há
precisão de data. Parece ter ligeiro conhecimento das igrejas na Judéia
(1.22-23) mas nega conhecimento pessoal delas. Ele cita também a Síria e
Cilícia, mas aparentemente não esteve ali (Cf At 15.41).
Sobre sua experiência cristã a epístola deixa claro sua profundidade.
Ele se considera "servo" de Cristo (1.10) e, apesar de ter o título
de apóstolo se coloca em posição de humilhação. Foi liberto da Lei mas continua
escravo de Cristo. É sobre essa antítese Lei x Graça que Paulo constrói a
"coluna cervical" da epístola.
Nesta epístola fica claro as características humanas de Paulo: Fica
atônito com a apostasia de seus leitores (1.6); teme que seu trabalho tenha
sido em vão e se demonstra decepcionado (4.11); mostra-se perplexo (4.20); se
demonstra claro e insistente em palavras nas suas explicações (1.9); não teme a
autoridade de Pedro e repreende-o em público (2.14) e se torna radical contra
os que pervertem o Evangelho (5.12).
Por fim, Paulo se demonstra um teólogo de ação e não de poltrona como
hoje. Possuía uma enfermidade que não se dá para saber ao certo o que era
(4.13), todavia esta enfermidade causou-lhe uma transformação desagradável em
sua aparência pois elogia os gálatas por não desprezá-lo (4.14). Sobre sua
possível oftalmia, doença que é cogitada por alguns como Calvino, no versículo
4.15 parece ser apenas uma figura de linguagem usada por Paulo. E quanto às
letras grandes usadas por Paulo no final da epístola serve tanto para reforçar
a teoria da oftalmia quanto para uma abertura para outras interpretações.
O estilo da epístola
A epístola de Gálatas difere das demais epístolas paulinas no que diz
respeito ao envolvimento do autor com as palavras empregadas. A grande riqueza
encontrada na epístola é o uso de figuras de linguagem. Existem mais figuras de
linguagem em Gálatas do que nas demais epístolas. Eis algumas: O olhar que
fascina (3.1); a exposição de notícias (3.1); a função do aio (3.24); o jugo
(5.1); o parto (4.19); a competição esportiva (5.7); o fermento (5.9); o
escândalo, ou pedra de tropeço (5.11); a cidade dos animais selvagens (5.15); a
colheita dos frutos (5.22); o processo de semear e ceifar (6.7); a família
(6.10) e o processo de ferretear (6.17).
Outra característica da epístola é o número de perguntas retóricas.
Estas se concentram mais na porção central doutrinária (caps. 3 e 4).
Destaca-se também o jogo de cintura de Paulo mediante situações de correção.
Ora Paulo chama os gálatas de "irmãos" (1.11, 3.15, 4.12, 28, etc)
ora de "insensatos" (3.1). Um toque ainda mais carinhoso aparece em
4.19 onde o apóstolo chama-os de "meus filhos".
Paulo se identifica com os seus leitores já que usa a primeira pessoa do
plural cerca de 70 vezes.
Propósito da epístola
Esta epístola deixa claro as intenções de Paulo para com seus leitores.
Na epístola exitem três diferentes grupos envolvidos na situação dos quais
Paulo considera.
O primeiro grupo é formado de pessoas com as quais Paulo já possuía um
relacionamento prévio (1.8, 9; 4.13). Paulo se demonstra extremamente voltado
em amor para com estes (4.15) e satisfeito com a revolucionária transformação
do povo gálata de pagão para cristão (4.8). Talvez o amor de Paulo para com
este grupo se deu pelo fato de este acolher amorosamente Paulo em sua cansativa
viagem somada à sua enfermidade (4.14).
O segundo grupo é o apostólico em Jerusalém. Paulo deixa claro sua
dificuldade com este grupo quando este tenta se sobrepor aos ensinos de Paulo
com se o apóstolo tivesse menor autoridade. Diante disso Paulo se coloca no
mesmo nível (1.1) dos apóstolos do ministério de "carne e sangue"
(1.16). Certo desentendimento teológico houve entre Paulo e este grupo
(2.11-14) que tinha Pedro e, mais tarde Tiago, como líderes. Paulo se refere
aos apóstolos como "colunas" (2.9).
O terceiro grupo era os judaizantes. Várias alusões são feitas a eles
por Paulo, porém sem nada de mais definido. A primeira referência é 1.7 onde se
diz que o grupo quer perverter o Evangelho. Outra referência é 1.9, contudo esta
é mais vaga, sem muitos detalhes. Em 3.10 Paulo faz uma declaração acerca de
"todos quantos são das obras da Lei", referind-se ao grupo. Outra
passagem importante está em 5.2 em diante quando o apóstolo trabalha os gálatas
no seu desvio de fé. Fica claro que um dos assuntos que Paulo enfrenta é a
circuncisão (6.12).
O apóstolo luta contra estes que tentam atrapalhar seus ensinos. Paulo
vê o movimento como sendo escravizante. Na epístola não fica claro quantos
participam do movimento e nem quem são os líderes judaizantes, contudo
presume-se que são da Galácia. Fica evidente que fazem parte da igreja local,
embora entraram de forma clandestina.
A questão dos judaizantes pode ser considerada comum para aquela época,
principalmente o quesito da circuncisão. A circuncisão era sinal de uma aliança
que trazia status, posição de privilégio, além de ser algo obrigatório no
Antigo Testamento. Muitos cristãos primitivos, antes de sua conversão, foram
condicionados a estes pensamentos, o que deixa margem para se pensar que
tentaram condicionar a igreja também. Contudo o movimento era comum, mas seus
resultados poderiam ser catastróficos para o cristianismo nascente. Os gálatas
eram muito sinceros; perigosamente sinceros, a ponto de pregarem as doutrinas
judaizantes com afinco. Se Paulo não intervisse com certeza o cristianismo
seria considerado mais uma simples seita do judaísmo. Portanto, o propósito da
epístola é trabalhar os gálatas sobre o perigo iminente. Sendo assim, Paulo
adota os seguintes pontos:
Paulo faz uma abordagem histórica: Paulo refuta a idéia legalista
dizendo ter apoio dos "colunas" da igreja (1.1 - 2.14). Logo isso
valeu como uma abordagem doutrinária mais importante, a qual coloca Paulo como
importante também, mas em segundo plano, ou seja, a doutrina é maior.
Paulo trabalha seu próprio testemunho (2.15-21).
Paulo trabalha a experiência dos próprios gálatas (3.1-5). O apóstolo
relembra-os dos milagres realizados pelo Espírito desafiando-os então a uma
série de perguntas.
Como a doutrina legalista dos judaizantes nasce da Lei mosaica do Antigo
Testamento, Paulo apela também para o Antigo Testamento (3.6-18) citando Abraão
como exemplo de que a promessa de Deus feita a ele era superior à lei. O apóstolo
então fala da maldição da lei e da salvação de Cristo, que se fez maldição após
cumprir a lei, que é interpretado por Paulo como sendo o retorno à fé de
Abraão, que, como foi dito, é superior à lei. O apóstolo também não isenta
argumentos que são baseados em considerações gramaticais (3.16).
Em seguida é trabalhada a questão da temporária função da lei e a função
permanente da fé (3.19-29) juntamente com a consideração de que os que são da
lei são apenas servos, mas os que são da fé são filhos de Deus.
Assim, o apóstolo os adverte contra o retorno às coisas antigas, que
seria voltar à condição de escravos (4.8-20).
Por fim, o método alegórico foi usado para ilustrar o ensino. Talvez nõ
faça sentido hoje, numa época onde a ciência racional predomina, mas para
aquela época tal ato significou grande aprendizado e compreensão.
Paulo termina seu argumento doutrinário com uma frase citada quase no
fim da carta em 5.1: "Para a liberdade foi que Cristo nos libertou",
onde ele deixa claro qual é a maior qualidade do cristianismo.
Data da Epístola
Muitos preferem dizer que Paulo escreveu a carta durante a fome de At
11.30, logo, por volta de 55 ou 56 d.C. Mas a grande pergunta é se Paulo
escreveu a carta antes ou depois do concílio de Jerusalém de At 15, que
provavelmente foi em 48 d.C. Se a data do concílio estiver correta, foi antes
de 48.
Esboço de Gálatas
I- Introdução 1.1-10
A. Saudação 1.1-5
B. Deserção dos gálatas 1.6-7
C. Denúncia contra os judaizantes 1.8-9
D. Declaração da integridade de Paulo 1.10
II- Biografia: Paulo defende sua autoridade 1.11 - 2.21
A. A fonte de sua autoridade 1.11-24
B. O reconhecimento de sua autoridade 2.1-10
C. A manifestação de sua autoridade 2.11-21
III. Doutrina: Paulo defende seu Evangelho 3.1 - 4.31
A. Com discussão 3.1 - 4.11
1. Experiência dos gálatas 3.1-5
2. Doutrina do AT 3.6-14
3. Caráter da aliança com Abraão 3.15-18
4. Propósito da Lei 3.19-24
5. Status daqueles que estão em Cristo 3.25 -
4.7
6. Insensatez de reverter-se ao legalismo
4.8-11
B. Por apelo
1. Com base na afeição deles por Paulo 4.12-18
2. Com base na afeição de Paulo por eles
4.19-20
C. Por alegoria 4.21-31
IV- Prática: Paulo exorta os gálatas 5.1 - 6.10
A. A usarem adequadamente sua liberdade cristã 5.1-15
B. A caminharem através do Espírito 5.16-26
C. A carregarem os fardos dos outros 6.1-10
V. Conclusão 6.11-18
A. Advertência contra os legalistas 6.11-13
B. Centralidade da cruz 6.14-16
C. Marcas de um apóstolo 6.17
D. Bênção 6.18
A epístola de Gálatas para a atualidade
Talvez, numa primeira leitura de Gálatas, seja difícil destacar pontos
importantes de Gálatas para os dias atuais. Parece antiquado o texto se for
aplicado hoje. Contudo a epístola de Gálatas é rica na apresentação de
princípios cristãos. E se caso esses princípios forem destacados num estudo
mais elaborado com certeza a epístola de Gálatas apresentará relevância para os
dias de hoje.
Essa relevância foi crucial na passagem da Idade Média para a Idade
Moderna, quando os reformadores releram Gálatas achando argumentos que foram
contra o pensamento vigente da época. Para os reformadores a epístola possui
uma extrema valorização da fé contra a lei no âmbito de salvação. Logo, se uma
releitura de Gálatas com uma aplicação de eisegese foi crucial para o
surgimento dos protestantes porque não seria ainda hoje?
Portanto, se for destacado alguns pontos (problemas) a serem pensados
hoje virão à tona os seguintes:
a) Uma advertência contra o legalismo: Nos dias atuais ainda se vê o
problema na sistematização das idéias sobre a salvação do homem. No início da
era moderna os protestantes foram contra a igreja católica porque esta impunha
a salvação por meio de obras, leis, dogmas e práticas. Os protestantes eram
contra porque, após a leitura de Gálatas, perceberam que a salvação vem pela fé
e tão somente por esta. Para os católicos da época (e de hoje???) a salvação só
é possível pela intermediação de um sacerdote (padre, bispo, papa, etc.) e de
ritos. Para os protestantes somente pela fé em Cristo. Logo, para os católicos
existem obras para que venha a salvação e para os protestantes existem as obras
porque houve a salvação. As obras, segundo os protestantes, vieram porque uma
vez que o homem foi salvo pode trabalhar essa salvação para o outro afim de que
este outro sofra uma benevolência como fruto do amor da salvação divina. Essa
interpretação só foi possível através da leitura de Gálatas. Para Paulo, a
salvação só poderia resultar da fé pessoal, o que tornava o cristianismo um
fator vivo e poderoso. Para Paulo, voltar ao legalismo é o mesmo que matar
novamente Cristo e, dessa maneira, negar a primazia da fé.
Nos dias de hoje, mais especificamente nas igrejas evangélicas do
Brasil, o legalismo tem tomado conta quando o assunto é salvação. A teologia
protestante tem sido abandonada por estas, que adotaram uma crença popular rasa
que associa a fé em Cristo com a necessidade de confirmação da salvação através
das obras. Para muitas igrejas é obrigatório entregar o dízimo, jejuar 1 vez
por semana, ir ao culto ao menos 1 vez por semana, etc, para que seja
salvo, o que nega o que Paulo tanto ensinou aos gálatas como forma de ativação
do cristianismo dinâmico. Para a salvação basta fé e para as obras basta amor.
A volta à legalidade pelas igrejas evangélicas é totalmente contrária ao
Evangelho pregado por Jesus Cristo e por Paulo. Nada se deve fazer para a
salvação a não ser crer. Essa crença trará como fruto o arrependimento e este
arrependimento também não é necessário para a salvação pois já é resultado de
uma vida salva. Assim, o salvo entende que as boas obras o acompanha porque só
o salvo entende que estas são necessárias para agradar seu coração sedento de
amor. Essa é a mensagem de salvação de Gálatas.
b) Uma advertência contra o subjetivismo nocivo: Ao contrário do
legalismo, que visa traçar metas invioláveis, ou pelo menos para que não se
viole, a negação do legalismo pode levar ao subjetivismo nocivo. Em outras
palavras, a negação do legalismo pode levar o homem a fazer tantas leituras e
aplicações com o texto de Gálatas, que culminaria em uma espécie de liberdade
impensada, onde muitos sairiam prejudicados; uma espécie de libertinagem.
Contudo ainda assim a epístola de Gálatas coloca a importância de não seguir o
egoísmo. Em 5.13 a epístola exige que não se ande segunda a carne. Em 5..2
Paulo afirma que o amor é o primeiro fruto do Espírito. E por fim, a epístola
deixa claro que o serviço prestado a outros é mais importante que para si mesmo
(5.13-14).
c) O uso do Antigo Testamento: Nos dias atuais as igrejas evangélicas
brasileiras têm usado com desregramento os textos do Antigo Testamento como
forma de doutrinação. O que a epístola deixa claro é que o mesmo deve ser usado
para confirmar o Novo Testamento. As doutrinas criadas não podem ir contra a
cultura que Cristo deixou. Ainda sobre o uso do Antigo Testamento fica claro
que Paulo citou textos, usou linguagem típica do AT e usou personagens do AT
com uma história alegórica. Fica clara a forma criativa que Paulo usou contra
os problemas dos gálatas. Isso também é valoroso para hoje.
CONCLUSÃO
Esta carta tem sido descrita, com razão, como sendo a carta magna da
liberdade cristã, e enquanto seus ensinamentos forem obedecidos, o cristianismo
jamais ficará sujeito a qualquer tipo de servidão...
Apóstolo. Capelão/Juiz. Mestre e Doutor em Ciência da Religião Dr. Edson
Cavalcante.
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