ESTUDO BÍBLICO SOBRE A VIDA
DE JOÃO BATISTA...
Marcos 6.14-29
Tema: João Batista
Nossa tradição evangélica esqueceu os
mártires de ontem e não sabe o que fazer com os de hoje. Tornou-se apática
diante do sangue derramado pelas testemunhas de Jesus. (Esta apatia diante dos
mártires anda de mãos dadas com a apatia diante dos sistemas de opressão.)
Deixamos por conta de outras tradições ocupar-se com tais manifestações de fé
cristã. Estamos diante de uma lacuna que nos empobrecem nos impede de ver o
fogo profético desses mártires. E quando conseguimos visualizar um mártir,
transformá-lo num fenômeno isolado e individual o que não nos permite desvendar
o sentido que a história adquire à luz dos mártires. Por isso, qual é o sentido
do martírio cristão?
A proposta da Série Alternativa para
o mês de junho é um tanto complexa. Sugere inter-relacionar três conteúdos: a
Festa de São João, um texto bíblico sobre a morte de João Batista e a temática
do martírio. Para viabilizar esta interação informar-nos-emos inicialmente
sobre a festa junina, estudando depois o texto proposto para desembocar numa reflexão
sobre a temática do martírio, para então visualizar a prédica.
l — A Festa de São João (nascimento do mártir)
A Festa de São João tem muitas
matizes regionais. Não e tão uniforme como a do Natal. Afinal, as festas
juninas não sofreram o mesmo nivelamento comercial que a celebração natalina.
Por assumir tais caracteres regionais, a exposição que segue carece do colorido
local que lhe deve ser acrescentada pelo pregador.
1. A Festa de São João tem sua origem
fora do cristianismo. Até é anterior a ele, como boa parte das festas do ano
litúrgico. Através desta festa se assinala — até hoje! — uma fase do ciclo da
natureza.
Provém do hemisfério norte. Era
conhecida entre povos germanos, mas não só entre estes. Aí ritualizava o
solstício de verão, comemorado, em especial, através de fogueiras e tochas.
Festejava-se, pois, a vitória do sol, o auge da luz. É a época da maturação de
cereais. É um tempo de bênção.
A igreja assimilou esta festa do
solstício de verão e deu-lhe nova interpretação. Ao determinar a Festa de Natal
para 25 de de¬zembro (i. e., no solstício do inverno), o cristianismo também
estava fixando a comemoração do nascimento de João Batista. Devido a Lc
1.26,36, o nascimento de João se dá seis meses antes do de Jesus sendo ambos
festejados na noite anterior. Uma vez relacionado o nascimento de João com as
festividades por ocasião do solstício diversos costumes desta são vinculados a
passagens da vida do Batista, como por exemplo: as fogueiras juninas são
conectadas com Jo 1.8; os folguedos com as danças de Herodias (Mc 6.22), etc.
A partir do 59 século, a Festa de São
João passa a integrar-se mais definitivamente no calendário eclesiástico.
Permanecem, contudo, certas indefinições quanto à datação. No oriente, a festa
foi celebrada após Epifanias, enquanto que, no ocidente, optou-se por junho
(cf. Lc. 1.36). Na reforma luterana o Dia de João Batista não foi abandonado.
Lutero o valida e recomenda (cf. WA 12.37). Neste dia festivo proferiu diversos
sermões (veja Bibliografia). Em uma prédica de 1525 atribui o seguinte sentido
à festa: Não comemoramos esta festa de São João Batista por causa dele, mas por
causa de seu ministério. . . Este dia de festa se refere a Cristo. Por isto a
Festa de João Batista deve ser enaltecida como a de Cristo. (WA 17/1, 285) Nela
não se celebra a austeridade do Batista, mas sua palavra e seu ministério.
Portanto, para Lutero foi um dia significativo. Contudo, no luteranismo
posterior foi perdendo em relevância, talvez não por último devido ao declínio
de popularidade das festas juninas entre o povo alemão.
2. Ao Brasil a Festa de São João
chega em sua versão lusitana. Do solstício do verão passa para o do inverno,
sem perder em importância. Chega a concorrer com o Natal, constituindo-se numa
festa muito popular em todo pais. A Festa de São João é a principal festa do
solstício de inverno realizada em todo o território brasileiro. (A. M. Araújo,
p. 18) Se bem que existam muitas peculiaridades regionais, as características
mais frequentes são as seguintes:
A fogueira não pode faltar. A festa
gira em torno do fogo. Nem faltam o foguetório e os balões.
Há toda uma variedade de expressões culturais de vestimentas, danças, cantos e encenações que perfazem o colorido da animação.
Há toda uma variedade de expressões culturais de vestimentas, danças, cantos e encenações que perfazem o colorido da animação.
A festa tem suas comidas e bebidas
típicas, naturalmente variando conforme as regiões. No sul, pipoca e pinhão não
podem estar ausentes. Busca-se representar fartura e vida abençoada, o que por
vezes aproxima nossa festa da de colheita.
A solidariedade grupal é revigorada.
A família se congraça. Em certas áreas, até exista um compadrio específico para
a ocasião: o compadre de fogueira.
Portanto, a Festa da São João
apresenta todo um conjunto de usos e costumes diferenciadores que lhe dão um
colorido todo peculiar. Contudo, talvez não seja o jeito próprio da festa que a
faça merecedora de nossa atenção. Bem mais decisivo me parecer ser que optamos
diante de uma das festas eminentemente populares em nossa terra. É folclore
organizado e orquestrado pelo povo, na roça e nas periferias das cidades. Em
boa medida, inclusive continua ileso do cooptação da propaganda. Como folclore
popular, a Festa de São João requer nosso especial carinho.
3. No âmbito das comunidades
evangélico-luteranas a Festa de São João, via de regra, não recebe destaque
maior, se nos ativermos a olhar para suas programações (por estar em declínio
no folclore alemão?). Se bem que as programações da comunidade não espelhem um
envolvimento maior, tenho observado que nossos membros estão presentes aos
festejos. Em especial os jovens participam de seus usos. Consequentemente, há
condições de correlacionar a Festa de São João com os cultos da época de junho.
4. A tradição eclesiástica vinculou o
nascimento de João Batista com as festividades do solstício de junho. O
nascimento de João é o motivo precípuo para os folguedos. Contudo, esta data
não só serviu para relembrar o nascimento. Foi atraindo a si também os demais
episódios da vida do Batista. Se bem que existisse uma data específica para
recordar sua decapitação (em 29.8, na Igreja Ocidental), esta não chegou a ter
importância maior; foi sendo incorporada à memória das festas juninas. Os
textos bíblicos vinculados à festa tanto são os do nascimento quanto os da
decapitação. Por exemplo, Lutero pregava sobre a morte de João na data em que
se comemorava seu nascimento (veja W A 37,462ss).
Teologicamente é relevante que se
relacione o nascimento com a morte deste pregador do deserto. Pois, é em sua
decapitação que sua vida se expressa do modo mais inequívoco. Na morte
con¬fluem sua pregação e sua vida: É decapitado por denunciar as autoridades!
No nascimento de João celebra-se o advento de um mártir. Ao preparar o caminho
do Senhor (Lc 1.76), o Batista segue as pisadas daquele mesmo Senhor. Sem
entender sua cruz, não se entende a vida de João. Nesse sentido é bom que o
sermão para as festas juninas tematize a execução do Batista. Passemos a
meditar o texto em questão.
II — Banquetes e massacres
1. A perícope de Mc 6.14-29 tem um
jeito peculiar. Desdobra-se à base de contrastes. Para percebê-lo, basta atentar
para início, e fim (o texto começa com um rei e termina com um túmulo!) ou para
os papéis atribuídos aos personagens principais: Somente o rei e os seus falam
e agem; João Batista nada diz; sua fala pertence ao passado {v. 18). Existem
muitos outros contrastes e tensões na perícope. Restrinjo-me a referir alguns.
Herodes escuta João de boa mente; Herodias persegue-o. Dum lado há gente em
banquete e orgia, do outro gente massacrada no cárcere. O prato que serve a
cabeça de João faz parte do banquete; a cabeça que nele é servida vem da
prisão. Portanto, existem diversos contrastes. Como avaliar esta diversidade?
Num item falta o contraste. Entre João Batista e Jesus, entre os discípulos de um e de outro não há nenhuma oposição. Pelo contrário, Jesus é tido como o João ressurreto (v. 14) e os discípulos de João agem como os de Jesus ( cf. 6.7ss,30; veja também 15.42ss).
Num item falta o contraste. Entre João Batista e Jesus, entre os discípulos de um e de outro não há nenhuma oposição. Pelo contrário, Jesus é tido como o João ressurreto (v. 14) e os discípulos de João agem como os de Jesus ( cf. 6.7ss,30; veja também 15.42ss).
2. A origem desta narração à base de
contrastes está carregada de sentido. Seu conhecimento direciona a avaliação de
seu con¬teúdo.
A narração é anterior a Marcos. Basta
verificar os vv.14-16 para conferi-lo: Através deles o evangelista a integra em
sua obra.
A descrição da cena sobre a decapitação
de João (i.e., em especial vv. 17-29) nem mesmo é oriunda da comunidade crista
que, via de regra, é responsável pelas demais perícopes de Marcos. Devemos
buscar suas raízes entre os discípulos de João, mencionados no v. 29. Sabemos
que estes sucessores do Batista constituíram um movimento significativo no
primeiro século). Aqui, estes discípulos memorizam o martírio de seu mestre.
Para tal valem-se também de outras cenas da vida do povo de Deus, em especial
de Elias (cf. 1 Rs 21) e do livro de Ester (cf. Et 7.2!). Portanto, estes
seguidores de João padronizaram a estória do martírio de seu mestre com auxílio
de tradições vétero-testamentárias.
Os articuladores da perícope de modo
algum parecem ser es¬pecialistas na letra. Pelo contrário, diversos indícios
exigem que se reconheça nela uma obra popular, pré-literária A estória gira em
torno de poucos personagens. Põe a corte a nu em seu desmando e desregramento,
como não o faria alguém que se soubesse identificado com ela. Além do mais, a
narração não se mostra muito bem informada sobre certos detalhes. Herodes
Antipas — filho de Herodes o Grande — não chegou a ser agraciado com o título
de rei (v. 14) pelos romanos; tão somente era um tetrarca. Contudo, estas
minúcias de titulação pouco sentido faziam para o povo que tinha que pagar
pelas festas dos soberanos. Por fim, Herodias não esteve casada com Filipe (cf.
v. 17), mas com um irmão de Herodes Antipas, cujo nome igualmente era Herodes.
A esposa de Filipe não foi Herodias mas a filha desta, como podemos verificar
no historiador Josefo, do qual também sabemos que João Batista foi executado
num forte junto ao Mar Morto e não na Galiléia, em Tiberias, como pressupõe
nosso texto. Como se vê, o povo que contou e moldou nossa estória desconhecia
certos detalhes das sociais e dos desregramentos palacianos.
A comunidade de Marcos certamente já
associara conteúdo e vida de João Batista, de sorte que ao integrar nossa cena
e as do cap. 1 em seu evangelho fazia-o alicerçado em tradições comunitárias. É
muito evidente que Marcos intercalou a estória do martírio de João. Por um
lado, percebemo-lo no fato de que ela está nitidamente interposta entre envio
(6.7-13) e retorno (6.30ss) dos apóstolos. Para preencher este ínterim entre
envio e retorno, o evangelista lança mão de um episódio que inclusive já
ocorrera há mais tempo, conforme o v. 14 (veja também 1.14). Por outro lado, os
vv. 14-16 são uma níti¬da formulação do evangelista, como se pode ver na
comparação com 8.28. Através destes vv.14-16 Marcos quer integrar a cena do
martírio em seu Evangelho de Jesus.
A trajetória que nossa perícope
percorreu até ser intercalada em Marcos carrega em si um rico sentido. Tentemos
delineá-lo.
3. Ao descrever o conteúdo, levo em
conta o jeito, a origem e a intencionalidade peculiar desta perícope.
3.1 Antes de mais nada devemos
avaliar os contrastes. São muitos. Porém, nem todos estão num mesmo nível; há
um topo: O rei Herodes encontra-se de um, João Batista de outro lado. Á
contradição elementar opõe a corte de um tetrarca romano e um pregador do
deserto. Este é o conflito que marca nossa história e está em seu ápice: Herodes
manda executar o Batista. As demais tensões do texto são daí derivadas ou estão
sujeitas a esta. Se o sermão perder de vista esta contraposição elementar,
estará correndo o risco de desfocar o texto. Isso estaria ocorrendo, por
exemplo, se procurássemos inocentar Herodes e deduzir tudo da sede de vingança
de Herodias. Não é o ódio de uma mulher, mas o poder arbitrário do rei e de sua
corte que provoca a denúncia de João (v. 18) e sua matança (vv. 16,17,27).
Portanto, a avaliação dessa nossa perícope não deve esquivar-se da confrontação
com o cerne das oposições que a perpassam. A cabeça de João Batista rola por
causa do sistema político!
3.2 Não há dúvida: Nossa história
visa Jesus. Falando de He¬rodes e João, ela tem em mira o Cristo que opera
milagres (v. 14, cf. v. 7 e v. 30ss), que foi morto, sepultado e ressuscitado
(v. 16 e v. 29). O destino de João como que prefigura o de Jesus. Nossa
perícope clama, pois, por uma leitura cristológica.
Antes de mais nada, é o evangelho de
Marcos, em seu conjun¬to, que evoca o sentido cristalógico do que narra nossa
história. E, em particular, são os vv. 14-18 e o contexto imediato do cap. 6
que veiculam a vida de João com Jesus de Nazaré. Neles ocupa função de destaque
a frasezinha que encabeça as referências a Jesus: o nome de Jesus já se tornara
notório (v. 14). Esta frase provém da missão; ela dá notoriedade ao nome de
Jesus (Lc 24.46s; At 9.15,27s; 19.17; Rm 15.20). Ora, o contexto de nossa
perícope justamente é o envio missionário dos apóstolos (v.7ss e v.30). A notoriedade
que o evento crístico adquire através da propagação de sua obra induz à
pergunta por seus antecedentes. Quem é este Jesus, o Cristo? Contando a
história de João, o evangelista o vai identificando através de seus
antecessores. Além desta referência mais detalhada a João, também a breve
menção de Elias e dos profetas (v. 15) visa dar identidade ao Nazareno. Cristo
está ancorado na profundidade da história de seu povo. Abaixo pretendo
aprofundar esta questão (cf. 3.3); antes de poder fazê-lo, torna-se necessário
interpor a seguinte reflexão:
Nossos versículos por certo atestam a
continuidade existente entre Jesus e seus antecessores: João Batista, Elias e
os profetas. Porém, não são estes que conduzem àquele, mas é este que ilumina
aqueles. Jesus estabelece continuidade em relação a João Batista, não o
inverso. De João Batista para Jesus há descontinuidade. Se assim não fosse, os
vv. 14-16 não dariam margem a divergências quanto ao sentido da vida de João. A
vida do Batista praticamente termina em obscuridade total (J. Gnilka, p. 251).
Em Jesus, sua morte e ressurreição, é que ela resplandece. Atenhamo-nos, agora,
a este resplendor que vern do João Batista, relido aos olhos do evento
crístico.
3.3 Ancorar nossa perícope
cristologicamente não pode equivaler à sua sutil supressão, i. e., no sermão
não basta falar da crucificação e ressurreição. Será necessário pregar a partir
da estória da decapitação do Batista. Uma leitura cristológica de nosso texto
não o apaga, mas o faz luzir de um modo inusitado do seguinte modo: A
decapitação do Batista não o lança na obscuridade mas, em Jesus, o torna um
martírio, um testemunho pré-figurador do Filho de Deus. Justamente neste
sentido a cena da morte de João é um auxilio extraordinário para soletrar e
trocar em miúdos o sentido que a morte do Cristo traz para as mortes deste
mundo. Uma perícope como a nossa exige falar das cruzes e dos mártires em meio
à história. Atribui sentido ao que aparentemente não faz sentido. É o que o
próximo capítulo pretende tematizar.
Ill — Resistência e martírio
Esta percepção contundente da radical
insuficiência humana, em especial também de sua sensibilidade religiosa ou de
sua boa vontade humanitária, não pode ser em nada diminuída numa reflexão sobre
o martírio.
]Deus cria sua história a partir do
nada e através dele. A trajetória de Deus conosco (conquanto pessoas e
conquanto história) é mediada pelo que nada é. Deus inverte a história; olha-a
desde aqueles que nada são. A fé cristã propicia, pois, uma inversão; vê a
história desde seu reverso, desde os fracos, não porque houvesse alguma
dignidade no reverso ou na fraqueza, mas porque a morte e a ressurreição do
Filho de Deus os revela. Aí também há espaço para os mártires, não porque neles
houvesse obras ou qualidades especiais, mas porque apraz a Deus tirar sentido
do que não o tem. Aprouve a Deus, em Jesus, retirar vida e sentido de túmulos,
de cemitérios clandestinos, de gente martirizada.
2. Portanto, o martírio emerge, com
sentido, desde dentro da teologia da cruz, o que o torna um tema inadiável.
Aliás, ele até é uma das especificidades da tradição judaico-cristã. A fase
tardia do AT e o judaísmo já colocavam a questão do martírio, i. e., do
sofrimento e da morte implicados no testemunho do Deus único e da justiça Nesta
época a profecia, em cuja conexão também são colocados João Batista e Jesus de
Nazaré, é vista como trajetória de mártires (veja 2 Cr 36.15s; Mt 5.12; At
7.52). Portanto, para o NT, no sangue inocen¬te de Cristo também o sangue de
seus precursores adquire significado.
3. O martírio não ocorre num espaço
genérico e indefinido. Tem um lugar social peculiar: O martírio ocorre no
conflito com as autoridades. No caso, o Estado aparece como agente dos poderes
da morte e de seus ídolos. Basta apontar para João Batista, a fim de
sensibilizar-se para o contexto político do testemunho cristão que implica em
morte. O martírio é resistência a autoridades.
4. Portanto, em Cristo é resgatado o
sentido dos que, como o mestre, pagam com a vida pelo testemunho. Porém, não
deveríamos individualizar estes mártires. Pois, afinal, nenhum dos que foram
massacrados — pensemos em João Batista— o foram como personalidades individuais
e isoladas. Tinham contexto. Eram figuras representativas das dores do povo,
dos conflitos de seus dias. Ao martírio é, pois, inerente uma vicariedade
popular. A rigor, este é, em nosso continente, o aspecto precípuo do martírio
cristão: o ato de partilhar o destino de milhões de seres humanos triturados
nas prisões e definhados pela fome. Ao meu ver, esta é a questão que, neste
instante, desafia nossa criatividade teológica e nossa resistência organizada.
Na cruz de Cristo os milhões de índios assassinados em nosso continente não
pereceram para o esquecimento. Na ressurreição de Jesus os milhares de crianças
massacradas pela fome, em especial no Nordeste, não somem da memória. Do mesmo
modo como João Batista emerge na vida do Cristo (cf. vv.14-16!),
transformando-se num memorial (v.29) de resistência que faz estremecer os
soberanos degoladores (v. 16), do mesmo modo dos famintos mortos no Nordeste e
dos cemitérios clandestinos na Argentina emergem cadáveres e memoriais de
resistência. Na fé em Jesus, até túmulos não calam. Portanto, nossa perícope
nos ajuda a retomar a perspectiva do martírio no seguinte sentido: Em Jesus, o
crucificado e ressurreto, abre-se a história em sua profundidade e em seu
reverso, aparecendo João batistas, abeis, profetas, nordestinos...
Interrompo aqui sabendo que a
avaliação da temática do martírio não está concluída, e nem é fácil completá-la
já que, entre nós, carece de articulação teológica.
IV — Sugestão para prédica
1. Iniciaria a prédica com alusões à
Festa de São João, em preparação ou andamento no mês de junho. Relacionaria a
alegria da festa com o nascimento de João Batista e com a situação angustiante
em nosso povo. Isso conduziria para a cena da decapitação de João.
2. Continuaria com a leitura do texto
e sua breve explicação, visando situá-lo no contexto da memória da comunidade e
no contexto de Jesus.
3. Daria ênfase especial à morte de
João Batista como morte que abre os olhos para os crucificados de nossos dias.
Nesta terceira parte da prédica traria detalhes de nossa atualidade.
V —Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Eis aí eu envio
diante da tua face o meu mensageiro, o qual preparará o teu caminho diante de
ti (Mt 11.10).
2. Confissão de pecados: Senhor, nosso
Deus! Teus profetas foram perseguidos e mortos, lá nos tempos da Bíblia. Nos
dias de hoje muitos são mortos por causa da sua fé. E muitos outros vão
morrendo por falta de alimento. Nós não somos inocentes. Senhor! Apagamos de
nossa memória os cristãos que, em nossa terra, foram mortos por causa de sua
fé. Nem queremos lembrar-nos dos que morrem de fome. Tem piedade de nós.
Senhor!
3. Anúncio da graça: Como o Pai me
amou, também eu vos amei; permanecei no meu amor (Jo 15.9).
4. Oração de coleta: Bondoso Deus!
Agradecemos-te que teu Filho veio a nós anunciado por tantas testemunhas, por
profetas e pregadores. Louvamos-te por João Batista, aquele que preparou tão
carinhosamente a vinda de Jesus. Reúne-nos em torno destas testemunhas e destes
mártires. Ajuda para que a sua vida nos encaminhe para teu Filho que contigo e
com o Espírito Santo vive e reina de eternidade a eternidade. Amém.
5. Leituras bíblicas: Is 40.1-11 e Lc 1.57-66.
6. Assuntos para a intercessão na oração final:
pelos que sofrem na comunidade e na localidade, em especial em hospitais, por
carência de alimento, por falta de escola; pelos que são explorados em seu
trabalho na cidade e no campo, em particular no município; pelos que
testemunham a Jesus Cristo em meio às dores do mundo e são por isso
perseguidos, em especial em nossa pátria; pelos milhares de índios massacrados
pela colonização; pelos colonos mortos por reivindicarem um pedaço de chão para
plantar; pelos operários assassinados porque reclamavam salários dignos; pelos
líderes políticos que perderam suas vidas na defesa dos interesses de todos;
pelos milhões que vão definhando por falta de comida e condições de vida,
ignorando até as causas de suas mortes; pela vinda do reino de Deus...
Bispo.
Capelão/Juiz. Mestre e Doutor em Ciência da Religião Dr. Edson Cavalcante.
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